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A CARTA DE ROBSON

Daniela Luciana da Silva

RESUMO

Pero Vaz de Caminha não era um padrão de português, Robson não é padrão de jovem brasileiro. Nesse período de Tantos 500 anos, circula em locais onde consegue desenvolver seu conhecimento e elaborar um discurso que, contrasta radicalmente com o tom oficial das "comemorações" e a sua exploração mercadológica. Há histórias sufocadas que se expressam por meios alternativos: as contra-narrativas da nação. Papéis recolhidos em espaços públicos revelam vozes indicadoras de conflitos existentes e por vezes dissimulados - ou negados - nos discursos oficiais ou midiáticos, mais audíveis.

 

"Tudo que acontece hoje com nós pobres habitantes das periferias tem relação com o que acontecia com os nossos ancestrais africanos que foram escravisados (sic) nessas terras indígenas" (Robson)

 

Minha participação no Projeto Reconfigurações do Imaginário e Reconstruções de Identidades, como bolsista PIBIC, consiste na leitura, recorte e fichamento do Jornal do Brasil e das Revistas Veja e Isto É. Objetivamos alimentar o acervo do Projeto, que contempla a cobertura jornalística do V Centenário do Descobrimento e analisar materiais relativos às questões étnicas que emergem dessas comemorações, focalizando africanos, indígenas e seus descendentes. No desenvolvimento dessa tarefa, passei também a ficar atenta ao tema em outros impressos de veiculação não-massiva. Encontrei ou recebi cartazes, folhetos, zines, convites, panfletos, manifestos, jornais de entidades de representação civil, textos religiosos, entre outros, que também recorriam ao tema, muitas vezes se estabelecendo como vozes contrárias aos discursos oficiais das Comemorações. Com a concordância da minha orientadora, Professora Doutora Eneida Leal Cunha, estou incluindo esse material no acervo do Projeto Reconfigurações.

Conduzo aqui a minha análise a partir da leitura de uma carta escrita por Robson Ferreira Santos, baiano de 20 anos, ator com passagem pelo CRIA (Centro de Referência Integral para Adolescentes). Vocalista e letrista de uma banda de rap, integrante do Movimento Hip-Hop da Bahia - Posse Ori, onde jovens da periferia de Salvador se reúnem para discutir, conversar, criar e cantar raps, trabalhar graffites e dançar break. Esses encontros possibilitam a expressão e a construção identidade e auto-estima. Há um conteúdo forte de ação social no movimento Hip-Hop, às figuras dos rappers no Brasil, e de forma mais localizada, a atuação do CRIA como aglutinador e formador de jovens de baixa renda em Salvador. São Cristóvão do Aeroporto é um bairro da periferia da cidade, pobre e violento como muitos outros, onde Robson mora com os pais. Esse ano ele repetiu pela quarta vez a sétima série do 1º grau numa escola pública de Salvador. Robson é exposto, pelas suas atividades, a muitas das variantes sobre os 500 anos que aqui tratamos.

Na leitura das cartas - de Robson e Caminha - textos de jornalistas, textos e os papéis "da rua", percebo vozes fortemente interativas, indicadoras das produções, reproduções e multiplicidade de discursos da sociedade instada a comemorar. Todas essas vozes, ao se manifestarem, disputam espaço numa na(rra)ção Brasil. Nós, brasileiros, vivemos o pós-colonialismo, somos herdeiros e reprodutores de estruturas materiais e simbólicas da colonização, é muito presente o passado de Colônia. E eu ressalto: é mais complexo por que algumas etnias, e não uma, constrõem, com maior ou menor espaço, as narrativas da potencial nação. Nesse processo existem seqüelas (culturais, sociais, econômicas, identitárias) derivadas da atuação da etnia colonizadora sobre os nativos indígenas e os negros africanos traficados e escravizados. Quando li Robson, pensei em Caminha.

 

Porto Seguro, 22 de abril de 1500: "Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade, a qual bem certo creia que, para aformosear nem afear, aqui não há de pôr mais do que aquilo que vi e me pareceu." Uma das primeiras falas desse documento declara uma posição neutra. Mas, essa neutralidade pretendida, não está concretizada, e quando lemos Caminha, como diz Eneida Leal Cunha: "(...) importa-nos ler, na Carta, como aquele homem europeu do século XVI, civilizado, cristão e mercador, narra e descreve o seu espanto com seres humanos radicalmente distintos de si, narra a experiência do inteiramente novo". Se a primeira carta permite fazer uma radiografia do olhar europeu e das estruturas simbólicas que o constituíam, podemos ver na segunda um documento de um tempo presente e a interpelação das narrativas constrativas do país.

No texto de Robson encontramos uma narrativa contrária a veiculada, por exemplo, pela publicidade estatal – em especial a turística – em torno das "comemorações" do "descobrimento". Vale ressaltar, que há uma intenção de reação a um discurso mais audível, e que essa reatividade não é algo novo nas relações pós-coloniais. Vejamos num trecho da carta, exemplo dessas "histórias rivais": "Nós não somos rebeldes sem calsa (sic), porque a raiz da nossa rebeldia está encravada no cotidiano sofrido dos bairros pobres de salvador, e principalmente na lembrança que a gente traz na alma do sofrimento e umilhação(sic) que os nossos irmãos africanos passaram nesta terra. O povo pobre, principalmente os negros (que são a maioria nesta cidade) precisa conhecer sua história, suas origens... conhecer e se orgulhar da história dos nossos heróis negros, tipo Zumbi dos Palmares, Revolta dos Búzios, Revolta dos Malês..."

Quase 500 anos depois, dessa mesma Bahia, um outro relato. Circunscrito como o primeiro, pois diz dos lugares de onde fala Robson. A carta é datada de fevereiro de 1999. Período em que a publicidade em torno dos aniversários do país e de Salvador tomava várias formas, espalhando imagens e projeções pela cidade. Os jornais do país inteiro criticaram ou reportaram essas imagens– o mais freqüente. Expressões como "Salvador-450 anos" e "Brasil-500 anos", estavam tanto nos editoriais, como nos artigos, cartas de leitores e em materiais publicitários, principalmente, do Carnaval. O marketing estatal envolvia estratégias competentes, que acabaram pautando movimentos sociais para uma reação ao clima de homenagens e comemorações do período. Todos esses discursos imbricados, conectados, falam melhor do que são os brasileiros. Quando juntamos os fatos, nos damos conta das ações e reações envolvidas nas falas.

O título da Carta de Robson é: "Cadê a liberdade?" Ele diz quem é logo após, sem sobrenome. Então indica alguns locais de onde fala: o CRIA, o Hip-Hop, a banda - Último Trem. Esse esclarecimento é uma forma de se apoiar em instâncias sociais que refletem e transformam o seu cotidiano. Robson faz um breve histórico, da fundação da cidade. É o primeiro parágrafo depois que ele se apresenta. No seguinte ele prossegue pinçando da história oficial um fato que nas propagandas, e mesmo nos textos da mídia, é pouco divulgado : "Quando se comemora o aniversário de Salvador, se esquece que nesse mesmo dia começou (sic) a chegar nessa terra, negros africanos condenados a serem tratados como animais selvagens pelos brancos europeus." A partir das idéias em circulação no ambiente Hip-Hop - também presentes nos materiais que recolhi das ruas - Robson faz a conexão que a publicidade do governo refutou. Ele usa termos carregados de sentido: negros africanos - condenados - animais selvagens - brancos europeus.

O tom continua denunciatório, agressivo e generalizante: "atualmente há um monte de idiotas comemorando os 450 anos de Salvador e os 500 anos de Brasil". Não compete aqui, dizer se Robson tem ou não razão, mas expor o grau de ressentimento e indignação circulando sob a capa da "Terra da Felicidade" é algo mais importante nessa análise. Grande parte da mágoa de alguns setores com as "comemorações" é a idéia de que mais importante seria criar estratégias para amenizar a aguda desigualdade social. É paradoxal, mas não incompreensível, entretanto, que segmentos dessa população historicamente humilhada, rejeitada e periferizada, queira ser incluída na sociedade de consumo e não "fazer revolução".

Essa contraposição entre integração-exclusão, "comemoração" dos 450 e 500 anos – protestos do tipo Outros 500, explorados e seus descendentes – exploradores e seus descendentes, está presente nos diversos materiais recolhidos assim como na carta de Robson e em exemplos recolhidos na execução do arquivo, tanto dos materiais "da rua" como nos grandes meios. São imagens e textos desses materiais contrastivos que estão sendo mostrados ao fundo. Na carta ficam explicítas algumas tensões emtrechos como: "Você acha pouco 500 anos de umilhação (sic) do povo indígena e negro brasileiro? Eu acho que já basta! (...)"

Da mesma forma que Pero Vaz de Caminha não era um padrão de português, Robson não é padrão de jovem brasileiro. Circula em locais onde, apesar da pouca escolaridade, consegue desenvolver seu conhecimento e elaborar um discurso, que contrasta radicalmente com o tom oficial das comemorações e a sua exploração mercadológica. São as histórias sufocadas que se expressam por meios alternativos: as contra-narrativas da nação. Esses papéis recolhidos em espaços públicos revelam vozes indicadoras de conflitos existentes e por vezes dissimulados, ou negados, nos discursos mais audíveis.

Salvador é um local onde, de forma bem contundente, proliferam os discursos e projeções, que se superpõem e/ou se contrariam, avançando e aprofundando a popularização dos 500 anos. Todas essas vozes se manifestando, de Robson a Caminha, representam, principalmente, a possibilidade de se construir a identidade nacional, indicam que a plurivocalidade existe mesmo em nossa contemporaneidade, ambientada e formatada pela mídia e pelo marketing. De Brasil 500 a Outros 500: são tantos 500 anos! Permitem que continuemos trabalhando com idéia não de um Descobrimento, mas de descobrimentos das várias possibilidades de apropriação do fertilíssimo campo simbólico associado ao V Centenário, recriando e reconfigurando algo sempre mutante e plástico: a identidade nacional.

Finalizo com um trecho da carta de Robson: "Os índios tinham suas próprias crenças religiosas, os negros tinham o candomblé. Os brancos forçaram os índios e negros a esquecerem suas origens, suas famílias, suas histórias. E Você? Conhece sua história, conhece sua origem? Você é livre?"

Agradeço a Robson, por ter me dado a Carta; a Professora Eneida , por ter permitido que eu usasse os papéis da rua e a carta de Robson no mesmo nível das revistas e jornais; aos colegas do Projeto Reconfigurações por sermos nós.

 

Daniela Luciana da Silva, estudante de graduação em Jornalismo, da Facom/UFBA, bolsista PIBIC, integrante do Movimento Hip-Hop da Bahia/Posse Ori.
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