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SINCRETISMO, ECUMENISMO OU INCULTURAÇÃO?

- A Vivência Religiosos dos Povos -

Dirceu do Socorro Pereira*

O artigo que ora apresentamos tem por objetivo contribuir com a reflexão sobre o Sincretismo Religioso (assim definido por alguns pesquisadores) presente no processo de consolidação da cultura religiosa que se estabeleceu no Brasil e, principalmente, na Bahia, guardando uma especificidade muito particular na cidade de Salvador.

Partindo do título que damos a este pequeno trabalho, já nos deparamos com um sério questionamento e, o mesmo nos remete ao confronto entre os conceitos antropologicamente aceitáveis, mas que na sua essência podem não expressar o verdadeiro significado que estes termos podem revelar.

No tocante ao sincretismo, segundo os dicionários, é a “fusão de elementos culturais diferentes, ou até antagônicos, em um só elemento, continuando perceptíveis alguns sinais originários”. Tomando esta definição, sempre foi o termo aceitável para exprimir o que nos revelou, especialmente em Salvador, a relação entre o cristianismo e as práticas religiosas dos indígenas (assim definidos pelos colonizadores, os povos que já viviam nestas terras) e dos africanos, ao serem introduzidos neste território como escravos.

Em se tratando do ecumenismo, diz-se ser “a disposição dos crentes à convivência e diálogo com outras confissões religiosas”, o que se restringe ao universo das confissões cristãs e, mesmo assim, entre as Igrejas cristãs históricas, pois algumas denominações que hoje estabelecem uma disputa e vivem atacando, especialmente à Igreja Católica, esta prática torna-se um desafio, quando não, uma impossibilidade.

Diante da dificuldade de se estabelecer o ecumenismo com as religiões não cristãs, propõe-se o diálogo inter-religioso como uma alternativa. O interessante é que, mesmo tendo como horizonte o diálogo, para alguns setores das Igrejas cristãs esta relação é quase impossível ou mesmo inexistente.

Quanto à inculturação, segundo afirmações de Pe. Heitor, “é sinônimo de gestação, de eclesiogênese, de reinterpretação crítica, seja das tradições e história do povo ao qual se pertence, como das experiências de fé das outras Igrejas”.[i] Portanto, ao trabalharmos este processo de interação dos diversos elementos presentes nas práticas religiosos que aqui se confrontaram, enquanto inculturação, partimos do princípio de que houve uma troca de informações entre as culturas, possibilitando que surgisse daí uma forma muito própria de vivência de uma religiosidade popular que não desprezou o que cada religião oferecia, de certa forma, contrariando o projeto de consolidação de uma verdade ou de uma religião única. O que significa para os indígenas e para os africanos a manutenção de uma identidade social, cultural e religiosa.

Tomando como proposta discutir a questão da inculturação religiosa, que sempre foi tratada como algo sincrético, nos deparamos com uma realidade historicamente complexa, pois se faz necessário refletir sobre a relação que se desenvolveu entre as práticas religiosas indígenas, africanas e o cristianismo trazido pelos colonizadores, tendo na Igreja Católica sua maior expressão.

Neste contexto, existe uma disputa de poder que não passa apenas pelo paradoxo de Deus único que os primeiros evangelizadores defendiam, mas, principalmente, pela tentativa de impor aos índios, num primeiro momento, a superioridade européia que os colonizadores estavam imbuídos.

A partir deste pressuposto, toda e qualquer outra forma de organização social e religiosa que fosse de encontro às estruturas européias e ao cristianismo também em expansão era considerada algo inferior, desorganizado e não civilizado.

É nesta ideologia da superioridade cultural que encontraremos algumas respostas para os questionamentos que trazemos. Quando os portugueses desembarcam no litoral destas terras depararam-se com povos que já habitavam este território e que viviam outra forma de organização sócio-política, cultural e, por conseguinte, religiosa, que de fato se constitui uma novidade para os que chegam. Os portugueses, por conta dos seus projetos de conquista, não buscaram compreender como se dava esta organização e nem mesmo entender como religiosamente estes povos viviam. Impregnados do cristianismo em expansão, só conseguiram detectar, segundo a sua ótica européia, que existia uma desorganização e uma falta de religião nestes povos.

O eurocentrismo era tão enraizado, que alguns viajantes, como Américo Vespúcio, chegou a citar em uma de suas cartas: “os índios não têm economia porque não têm bens de propriedade... não têm religião nem justiça porque não possuem templos nem leis.”[ii] Segundo Koshiba, “essa visão revela, antes de qualquer coisa, uma profunda incompreensão dos europeus em relação às sociedades indígenas”.[iii]

É diante desta falta de compreensão que observamos o processo de catequização do povo indígena, não existindo, por parte dos missionários responsáveis por este trabalho, outra alternativa senão cristianizá-los, impondo-lhes uma forma de cultuar Deus que negava toda a sua identidade, provocando uma ruptura de valores e costumes.

Tendo os portugueses agido desta forma com os indígenas, não poderiam fazer diferente com os negros, que já sofriam o processo de escravidão desde a África, tendo a religião como um dos argumentos para esta prática. Como afirma Maestri: “a religião servia de justificativa aos ataques escravizadores lusitanos. Os africanos seriam reduzidos à escravidão, mas ganhariam a salvação eterna.”[iv]

Com que “autoridade” os lusitanos poderiam afirmar que os africanos não se salvariam? Mas, é esta verdade cristã unilateral e exclusivista defendida pelos portugueses, que os levaram a desconsiderar outras práticas religiosas e, por conseguinte, a cultura de outros povos, considerando o cristianismo como a única via de Salvação.

Neste processo, nos deparamos com a contradição do cristianismo pregado pelos colonizadores, pautado nas orientações da Igreja institucional e nos ensinamentos do Jesus Cristo histórico, que em nenhum momento impôs ao outro sua cultura. Enquanto Jesus pregou a libertação do homem por inteiro, os colonizadores pregavam a libertação da alma e, sendo o negro, segundo os missionários evangelizadores, desprovido de alma, justificava-se a sua escravização como forma de purificação.

Neste sentido, tanto para os indígenas, como para os africanos, a cruz que deveria ser sinal de salvação tornou-se uma elemento de justificação da opressão e do massacre de tantas vidas.

Desde o início, este processo caraterizou uma situação de preconceito e discriminação. Esta realidade se perpetua até os nossos dias, mesmo com todas as tentativas implementadas por setores das Igrejas cristãs, principalmente da Católica, que tentam difundir o ecumenismo e o diálogo inter-religioso como alternativa para quebrar as barreiras da intolerância e da incompreensão. São os movimentos dentro e fora do universo das instituições religiosas que primam pela busca da identidade étnica e cultural, para que os indivíduos, homens e mulheres, nesta sociedade, possam, a partir daí, buscar resgatar a sua cidadania, seu valor de pessoa humana.

Como nos dizia Pe. Heitor Frisotti, numa de suas cartilhas, “estamos situados numa sociedade discriminadora que rejeita e exclui o diferente e numa Igreja que, apesar de se declarar voltada ao Reino de Deus, ainda pauta sua ação a partir do institucional e do doutrinário, faz com que seja difícil sair do exclusivismo religioso e das classificações institucionais.”[v]

De fato, ainda é muito forte na sociedade os sentimentos de preconceito - levando as pessoas a elaborarem juízos acerca do outro, sem nem mesmo conhecer o mínimo que seja da sua cultura, organização social e prática religiosa, promovendo a discriminação social, econômica, cultural e religiosa. Nesta realidade, nega-se profundamente o valor do outro até mesmo enquanto pessoa humana, haja visto os diversos casos de discriminação racial que acontecem diariamente na sociedade e os de caráter religioso, onde se considera a religião do outro como diabólica e tantas outras afirmações.

Ao longo deste ditos quase quinhentos anos de Brasil, consolidou-se na sociedade brasileira, principalmente na elite deste país, uma ideologia de superioridade, que em muito contribuiu e ainda contribui para a dificuldade de construção de uma identidade, enquanto brasileiros(as), pois ainda encontramos resquícios da cultura européia muito fortes no universo da Igreja Católica, principalmente na sua hierarquia, e a forte influência das ideologias Norte-Americanas, especialmente no que tange à realidade cultural hoje.

Sendo assim, no campo da religiosidade, as coisas não caminham por outra ótica; há uma forte influência européia vinda de cima para baixo, que dificulta o processo de diálogo, impondo novamente uma fechamento e um certo radicalismo por parte de representantes de alguns setores, chegando ao absurdo de utilizarem-se dos meios de comunicação para divulgar um discurso preconceituoso e racista contra as religiões “não cristãs”, isto a partir da visão do cristianismo unilateral difundido pelos colonizadores.

Esta realidade que hoje observamos caracteriza um fechamento para o outro, enquanto cultura e até mesmo como ser humano, vai de encontro a algumas argumentações de estudiosos da própria Igreja, que a partir do Vaticano II e de alguns Sínodos, buscaram estabelecer a reflexão, chegando a afirmações e conceituações acerca da proposta de inculturação religiosa.

Destacamos, neste sentido, a conceituação de Pe. Arupe, que em sua carta a toda a comunidade da Companhia de Jesus sobre inculturação, posterior ao Sínodo da Catequese em 1977, afirma: “é a encarnação da vida e da mensagem cristã numa área cultural concreta, de sorte que esta experiência não somente chegue a expressar-se com os elementos próprios da cultura em questão (o que não passaria de adaptação superficial), mas se converta no princípio inspirador, normativo e unificador, que transforme e recrie esta cultura, dando assim origem a ‘uma nova criação.’”[vi]

Neste sentido, fica evidente que a inculturação religiosa foi um passo significativo para a reelaboração cultural, contribuindo muito para que brotasse daí o novo, que evidentemente não nega o velho, mas proporciona uma releitura da religião como veículo de construção social, bem como da própria sociedade como um todo, buscando perceber as suas contradições e seus avanços.

Portanto, neste aproximar-se do terceiro milênio, segundo a ótica ocidental cristão, temos que estar bem atentos para este processo de inculturação religiosa, que se propõe abrir os horizontes para um verdadeiro diálogo com as outras religiões, como grande possibilidade de aprendizado com as religiões indígenas e afro, como também com as outras religiões milenares, no sentido de que possamos, ao passo que quebramos as barreiras, favorecer a consolidação de uma identidade social, religiosa, cultural, que não precise se confrontar para disputar espaço, mas sim, para promover uma transformação neste país e no mundo, buscando realmente libertar o homem e a mulher na sua totalidade - corpo e alma. Pois, ao consolidar-se esta identidade, também se evidencia as especificidades de cada cultura e/ou religião, que não precisa desaparecer para que o outro apareça, mas firmar-se e afirmar-se a cada momento como possibilidade de interação mesmo na diversidade.

 

NOTAS:

[i] FRISOTTI, Heitor, Optar com os Pobres, p. 56.

[ii] KOSHIBA, Luis, O Índio e a Conquista Portuguesa, p.14.

[iii] Ibidem, p. 15.

[iv] MAESTRI, Mário, O Escravismo no Brasil, p.31

[v] FRISOTTI, Heitor, Comunidade Negra - Evangelização e Ecumenismo, p.07.

[vi] FRISOTTI, Heitor, Optar com os Pobres, p.14.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

KOSHIBA, Luiz. O Índio e a conquista portuguesa. São Paulo, Atual, 1995.

MAESTRI, Mário. O escravismo no Brasil. São Paulo, Atual, 1996.

FRISOTTI, Heitor. Optar com os pobres - observações sobre teologia e culturas na prática eclesial no Brasil. Salvador, MC, 1992.

FRISOTTI, Heitor. Comunidade negra - evangelização e ecumenismo, Salvador, MC. 1992.

REGINA, Silvia, Comunidades em diálogo na causa Afro-brasileira, Texto Base do 10º Intereclesial, Paulo Afonso-Ba, Fonte Viva, 1999.

SUESS. Paulo, CEB’s , comprometidas com a causa indígena, Texto Base do 10º Intereclesial, Paulo Afonso-BA, Fonte Viva, 1999.


* Dirceu do Socorro Pereira é professor, licenciado em História pela Universidade Católica do Salvador, Assessor da CNBB/Regional NE 3(Bahia e Sergipe).