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Tecnologia, Política e Diversidade
O futuro do ato político sem a mediação do discurso

Juliano Sousa Matos*

 

I Antes do discurso, a fala.

Os interesses políticos e as lutas pela igualdade dispõem de novos meios de expressão e representação (texturas semióticas digitais e virtuais) social neste final de século. Se entendermos que o discurso político é um fenômeno coletivo, um conjunto das falas individuais que se sobrepõem em função de interesses comuns e constituem a normatividade que será a moldura da "fala coletiva" de um grupo, estamos, hoje, diante de estruturas de comunicação (como a internet) que dificultam e chegam a inviabilizar a montagem coletiva do discurso.

Tradicionalmente, as representações, associadas na construção dos discursos, obedecem a efeitos condicionados (pelo grupo) de significados, conceitos e valores específicos, compartilhados por uma coletividade. A característica essencial destes interesses políticos representados enquanto discurso é a transversalidade ou generalidade dos significados que animam sua dinâmica. Esta característica guarda um risco grave, que reside na habilidade e prática de alguns grupos em conservar, transmitir e impor significados compartilhados a outros como "naturais". O caráter autocrático e coletivo dos enunciados neste tipo de organização é afirmado, em um primeiro momento, de forma doutrinária e, logo em seguida, tenta-se relativizá-lo com uma hermenêutica ilusória, pois fixa nos rígidos limites do dogma. O fato é que neste contexto a mediação do discurso é imposta e destina-se a quem não pertencia à comunidade inicial, para quem não teve sua fala contabilizada. Tais coletivos produzem e operam os elos da significação para seus inquilinos neófitos. São exemplos alguns grupos de psicanálise, partidos políticos de extrema direita ou esquerda e toda retórica intransigente.

O desentendimento destes grupos é com a produção de sentido que não repete o significado compartilhado da "fala coletiva": exatamente o que ocorre em ambientes mediados por estruturas iterativas de comunicação. A distinção entre sentido e significado presente nesta articulação remonta a Vygotsky(1), que toma por sentido um significado não compartilhado e o significado por um sentido compartilhado, que resulta em uma fala socializada. Com efeito, todo sentido tem origem na fala, no particular, e os significados são construídos em coletividade e mediados politicamente através do discurso. O efeito dos significados do discurso passam a ocupar os sentidos presentes na fala e representações do sujeito. O pavor das construções de sentido, independentes, são punidas em função de uma escala de coerência/incoerência entre os estereótipos e seus respectivos atributos, estabelecido pelo discurso, o que resulta em estigma, como ensina Goffman(2). A sinistra estratégia de dominação é elementar: repetir a diferença. Não há sentido ou diferença que resista à homogeneidade produzida pela redundância.

Hoje, e daqui por diante, após conseqüentes transformações tecnológicas nas comunicações, revoluções de canais e códigos, não mais de mensagens como vinham ocorrendo, as falas e os agenciamentos individuais são privilegiados. As condições históricas e técnicas para a sobreposição de "falas" particulares, interesses e a montagem de discursos políticos extinguem-se gradativamente. A elaboração de um discurso político tradicional encontra resistência na prioridade dispensada à subjetividade, à possibilidade de romper com o código particularmente. Os canais de comunicação se multiplicaram e criaram esta possibilidade.

Juntamente com a diversidade do código e das estruturas da língua, fragmentam o entendimento do mundo e a maneira de representá-lo. Os interesses, as ideologias, utopias e organizações partidárias entrarão em um regime de intensa fragmentação. O ato político ensaia neste início de século um desfecho performático, onde o enunciado é a atuação da enunciação. Não haverá como delegar interesses na construção de uma representação. A fragilização do código reside na realidade da ampliação dos canais de comunicação e informação. O meio é a mensagem porque o canal é o emissor. O homem político será ator de seu interesse. As ONGs serão os modelos - entre a ação faltosa do estado burocrático e a falta de poder executivo dos partidos - em seu conjunto de atitudes, do que poderá se chamar discurso em ato político, onde somos atores de nossos interesses. A normatividade no interior destas estruturas é expontânea e não determinante. A coletividade aqui é descontínua, que acumula sentidos sem passar à extensão dos significados.

As tecnologias do virtual favorecem à fala, que nada tem de coletivo, como demonstra Saussure(3), em detrimento do discurso enquanto traço comum da representação de interesses coletivos. Os processos objetivos implicados nos novos canais de comunicação influenciarão diretamente a lógica dos processos relacionais e políticos criando, no espaço da mediação, novos lugares com propriedades de vasta permeabilidade à manipulação particular da informação, o que gera diversidade. A representação política dos interesses coletivos ganham inúmeros meios de incursão social, gerando todo um universo de originalidades radicais. Diante das novas singularidades constituídas, os processos políticos devem, também, se transformar profundamente. Como conciliar uma vastidão de representações, todas muito distintas das demais? Os poucos pontos de contato e áreas de sombreamento de interesses entre a diversidade excessiva de um determinado grupo serão raros e esta realidade apresentará maiorias sempre aquém de uma maioria significativa. Quais estratégias de poder entrarão em jogo?

Enfim, a fala pressupõe uma relação própria do sujeito com a cultura, uma prática particular e subjetiva dos signos e códigos da cultura, sem uma mediação semântica para constituição de referenciais. A própria subjetividade designa suas referências, implicando-se diretamente na sua elaboração. A revolução dos canais viabiliza o acesso singular ao código da produção de sentidos eleitos por uma determinada cultura.

 

II Antes da Política, a Diversidade

A política e o ato político dificilmente sobreviverão com o que chamamos de partido político. Destes serão feitos grupos temporários que, como propõe Boaventura de Sousa Santos(4), desenvolverão suas ações considerando o contexto de heterotopias e não utopias: "Em vez da invenção de um lugar totalmente outro, proponho uma deslocação radical dentro de um mesmo lugar, o nosso". Tomo esta colocação como percurso e índice da falência do elemento discursivo, produtor do sentido alheio, de um significado universal e totalizante do espaço, tempo e história.

O jogo político de marcar posição como pontuação coerente de um determinado discurso adquire uma inconstância e uma fluidez de elevada incerteza semântica: a linguagem política perde sua capacidade de produzir redundâncias, construir discursos, utopias e ideologias. Félix Guattari(5), em seu texto O Inconsciente Maquínico e a Revolução Molecular, alerta para o fato de que a economia do desejo só conseguirá ficar em harmonia com os progressos técnicos e científicos diante de uma profunda transformação das relações sociais, o que implica uma retomada das máquinas técnicas pelas máquinas desejantes, dos processos molares (genéricos) de alienação do sujeito por processos de emancipação da subjetividade (processos moleculares). E um partido político é uma máquina técnica, máquina de guerra, de produzir máquinas abstratas como o discurso político. No Anti-Édipo(6), Deleuze e Guatarri descrevem as máquinas desejantes como dispositivos que inserem o produzir no produto, em oposição às máquinas técnicas, que transmitem o valor da produção ao produto. O que resulta daí para o sujeito é a implicação da fala singular e dos traços singulares da produção subjetiva no bem simbólico (inclusive o político: ideologia, utopia e heterotopia) de consumo. A revolução molecular consiste em inserir a fala no lugar do discurso como elemento de mediação e não o processo molar clássico de tomar o discurso por fala.

As conseqüências diretas das transformações porque passam as tecnologias da inteligência e seu substrato técnico é, hoje, essencialmente antropológico. Há, portanto, uma interferência efetiva na circulação, associação e transmissão das representações. As operações de produção discursiva nunca foram tão implicadas na dinâmica evolutiva dos canais e na física de sua transmissão, bem como nos circuitos subjetivos dos receptores. Não há mais passividade considerando a produção da informação. O trânsito dos fluxos é reverso, ativo em ambas as pontas do canal. Para Pierre Lévy(7), as tecnologias da inteligência são um terreno político fundamental – lugar de conflitos, uma espécie de arena de mensagens e hoje também de códigos, pois "é ao redor dos equipamentos coletivos da percepção, do pensamento e da comunicação que se organiza em grande parte da vida da cidade no cotidiano e que se agenciam as subjetividades dos grupos." Estamos diante de um processo de fragilização das lógicas discursivas e afirmação da produção subjetiva do sujeito e seu desejo para o outro. As tecnologias do virtual afirmam a singularidade, sustentam a diferença e a descentralização, impõe a alteridade como lógica viável na produção de identidade e fazem da diversidade um valor político. Os "ditos virtuais" privilegiam as perspectivas e os projetos, a fala mantém uma relação radical com o instante.

O desdobramento desta configuração é uma fragmentação das perspectivas e o futuro da política será pensado no equilíbrio de uma vasta diversidade que pulsa a diferença de cada interesse estruturado. Como observa o antropólogo italiano Massino Canevacci, em entrevista a Elvis Bonassa, para a Folha de São Paulo, em 06.09.95, identificando transformações na esquerda italiana: "(...) uma esquerda nova: não há mais a forma do partido. O centro social não tem linha política, não tem fidelidade, não tem autoridade, não tem uma gestão de lideranças. Tem uma autogestão, um conjunto muito diferenciado de práticas, teorias, ideologias, mas não tem um momento de síntese política. (...) cada pessoa ter a sua visão de mundo, sua prática, e não ter de coordenar-se com alguém".

 

NOTAS:

1 - LA TAILLE, Y. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas do em discussão. São Paulo, Summus, 1992, pp. 80-82.

2 - GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro, editora Guanabara, 1988, pp. 12-13.

3 - SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. São Paulo, editora Cultrix, 1995, pp. 26-28.

4 - SANTOS, B de S. Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo, Cortez, 1997, p. 325.

5 - GUATTARI, F. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo, editora Brasiliense, 1987, p. 172.

6 - DELEUZE, G. GUATTARI, F. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Lisboa, Assírio e Alvim, p. 35.

7 - LÉVY, P. As Tecnologias da Inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. São Paulo, editora 34, 1996, p. 187.

 

* Juliano Matos é Bacharel em Psicologia com Formação em Psicologia Clínica e Mestrando em Educação pela UFBA, Professor da UCSal e autor do livro Geometria de um Nó.