inquice@ufba.br Livro de Visitas

MAU/FAUFBA 30 E 31 DE OUTUBRO DE 1997
SEMINÁRIO NACIONAL DE DIÁSPORA NEGRA
FORMAÇÕES URBANAS

A REPRESENTAÇÃO ÉTNICO-ESTÉTICO ESPACIAL 
NA SOCIABILIDADE DOS INDIVÍDUOS EM NOVOS ALAGADOS
(i)

Cristiane Santos Souza

"Me diz que eu sou ridículo,
Nos teus olhos sou mal visto,
diz até tenho má índole,
mas no fundo tu me achas bonito,
lindo! (ii)

A velha Salvador, por muito, capital econômica e social da metrópole, cidade fortaleza (cercada por seus belos fortes), cidade que guarda muitas cicatrizes em sua face por ter sido ponto de entrada dos negros escravos trazidos para o Brasil, cidade de grandes revoltas, como a dos malês, "cidade das mais belas do nosso país", com sua arquitetura, suas praias, suas "gentes". Aquela que nos protege em seus guetos dos olhares recriminadores e marginalizadores daqueles que detêm o poder de direção e formação dos valores sociais. Cenário que guarda os condenados a pagar o ônus de viver nos "fétidos" e "lamacentos" becos da cidade em desenvolvimento, pelo simples fato de ser de "cor", de carregar no corpo as marcas das injustiças sociais, da improvisação diante da impossibilidade de não poder estar participando direta e ativamente no mundo do mercado, de não participar do " mais belo dos belos".

A pretensão aqui não é a de fazer grandes inferências e nem tirar conclusões, mas sim arriscar pinceladas de "cor" e de estética na reflexão acerca da forma como nossa metrópole se configura diante de sua realidade étnica, da forma como os vários discursos a respeito da estética espacial influenciam na subjetividade e sociabilidade desses indivíduos, e em suas ações práticas. Pensar de que forma os indivíduos de constituição negro/mestiça moradores de bairros pobres, periféricos, socialmente feios, anti-estéticos, que a todo momento se deparam com esse "estigma", se sentem e reagem diante dessas situações.

Não é difícil, num olhar panorâmico, em Salvador, encontrar bairros e comunidades onde isso se processe com nitidez. Tentando compreender como esses elementos se articulam num determinado local, abordarei, aqui, alguns elementos do cotidiano de Novos Alagados, uma ocupação urbana existente há mais de 20 anos, numa enseada das mais bonitas da Baía de Todos os Santos, sobre palafitas, que representam a materialização da criatividade dos sujeitos diante das limitações sociais que impedem a ocupação do território urbano (terra firme).

Antes de tratarmos diretamente desse espaço, é importante lançarmos um olhar sobre alguns elementos norteados da configuração do perfil da cidade. Recordemos que, no Brasil, o processo de crescimento das cidades se deu nas décadas de 50 e 60, a partir de um acelerado crescimento industrial e urbano. Com a implantação de grandes industrias no país, a cidade começa a sofrer grandes modificações em sua ecologia humana e em sua arquitetura. Por exemplo: Salvador tinha, antes no centro, uma população basicamente de classe alta; com o passar do tempo essa configuração muda, já não encontramos mais essa categoria, e sim as classes mais pobres. Essa modificação se processa basicamente, a partir das ultimas décadas, onde o comércio passa a ocupar quase todo o centro.

Na Bahia, em seu conjunto, durante as primeiras décadas do século as transformações urbanas não foram muito grande. Em Salvador, especificamente, não foi diferente, pois é a partir do final da década de 60 que a cidade realmente sofrerá profundas transformações em sua configuração estético-espacial, demográfica e ocupacional, contando para isso com a implantação dos pólos industriais (Centro Industrial de Aratu/CIA, Pólo Petroquímico de Camaçari/COPEC e etc) em seu entorno.

A rápida incorporação da cidade à dinâmica do comércio, da indústria e em consequência disso, o crescimento da migração, criou a necessidade de novos locais de moradia. Os antigos espaços de ocupação habitacional já não correspondiam à demanda populacional da cidade. Aumentando daí o interesse de grandes setores particulares, além dos setores públicos pelo mercado imobiliário. Surgindo grandes projetos de política habitacional, possibilitando a expansão da cidade para outros pontos, por exemplo: para áreas que hoje compreendem a Avenida Paralela, a Avenida Suburbana (Subúrbio Ferroviário), assim como o adensamento de outras áreas do continuum urbano, como o Vale do Canela e de boa parte da região da orla marítima.

Como não poderia deixar de ocorrer, essas modificações econômicas, políticas e sociais causam uma grande transformação no perfil de Salvador. O surgimento das favelas/invasões/ocupações espontâneas, deixam expostos os vários problemas trazidos pelo "desenvolvimento" industrial e urbano. Passamos a perceber mais explicitamente a segregação, estratificação social através das localidades de moradia das várias populações. Nesse aspecto (bairro, rua, casa, organização da moradia etc.) essa perspectiva fica bem visível, por exemplo, em frases como: "Somos o lugar onde vivemos" emitidas freqüentemente por diversas pessoas que acham que o lugar, sua aparência, sua estrutura e credibilidade junto as outras pessoas, refletem a sua forma de ser. Esse discurso é tão forte e presente em nosso cotidiano que, a título de ilustração, é só pensarmos nas inscrições para participação nos blocos de trio em Salvador no Carnaval, em que as pessoas (moradoras de bairro "pobre") interessadas têm que passar por um verdadeiro "interrogatório policial" para que possam ser aceitas.

Esse quadro relacional obriga o sujeito a se mascarar diante das instituições, dos espaços, dos lugares como forma de poder estar participando dos acontecimentos ou até como fórmula de aceitação. Exemplo disso são os anúncios para o preenchimento de vagas para empregos, onde a estética (boa aparência) é posto como um dos principais requisitos e como já é sabido os parâmetros de avaliação para essa boa aparência é medido a partir do modelo ocidentalizado de beleza. Aqueles que não se enquadram estão automaticamente "eliminados".

Resgatando os conceitos aqui propostos, falar de estética nos leva para as grandes divagações filosóficas do que é ser "belo" e o "não ser belo", mas nosso interesse aqui, como acredito já foi sinalizado, não se prende apenas a esse aspecto da estética, o que buscamos é tentar entender de que forma, determinadas configurações estéticas influenciam na dinâmica social dos indivíduos num espaço, pobre, suburbano, de maioria negra-mestiça, além de tentar compreender de que forma são travadas as relações no seu contexto cotidiano e nas outras esferas da grande Salvador. Para tanto é importante ouvir as vozes daqueles que dão vida ao lugar, e como diz Michel Certeau1, fazendo e compreendendo os trajetos, os caminhos feitos e significados pelos sujeitos, buscando perceber como eles representam em seu imaginário a estética e a sociabilidade existente no local, além de tentar entender de que forma isso reflete fora da comunidade.

Lembro-me de um trabalho feito pelo sociólogo Gey Espinheira que no resgate de uma das várias obras de Jorge Amado onde fala de um velho marinheiro que se delicia ao avistar a beleza das praias e do cotidiano vivido pelas pessoas da suburbana, Periperi, transparecendo o sentido da criatividade e crença das pessoas diante da impossibilidade, diz:

"... perdida inelutavelmente no tempo, mas de tantos outros lugares pobres e sofridos, criados às pressas e improvisadamente para abrigar tanta gente que não tem lugar nessa cidade terrivelmente ingrata com sua gente. É Bate-Coração, Nova-Constiutinte, Fazenda Coutos, Novos Alagados, Final Feliz, denominações tão criativas e esperançosas para um cotidiano de vida de medo e sofrimento".

Assim é Novos Alagados, bairro que tem sua origem na construção de casas de filhas de Santo do terreiro de Mãe Leninha, nos fundos de sua casa (hoje denominada comunidade Nova Esperança), seguindo-se da vinda de pescadores e dos migrantes atraídos pela perspectiva de empregos para obras do Pólo Petroquímico de Camaçari. É importante salientar que o processo de ocupação da área se intensifica a partir de 1975, depois das desapropriações feitas pelo poder público para a implantação da AV. Suburbana, cujas indenizações dos domicílios removidos foram insuficientes para a aquisição de novas moradias.

É com esse movimento que os moradores formaram uma pequena aglomeração na Enseada do Cabrito, local que lhes oferecia uma nova via de sobrevivência, a pesca. Inicia-se a construção dos barracos sobre o manguesal, as palafitas. Constituindo as comunidades de Nova Esperança, Toster, Boiadeiro de Cima e de Baixo e 1º de novembro, que posteriormente seriam ampliados, com a vinda de trabalhadores oriundos do interior e da própria Salvador, de localidades mais distantes, para tentar trabalhar nos complexos industriais de Camaçari e Aratu.

Outro exemplo da importância destes elementos na configuração dos atos e gestos dos indivíduos, remeto-me mais uma vez a voz de Gey Espinheira em seu trabalho na ocupação de Bate Coração (Paripe) onde ouviu de um dos seus informantes ao olhar do alto de Paripe, no cume de Bate-Coração, contemplando a paisagem tranqüila e bela da Baia de Todos os Santos, dizer: " - Essa é uma terra cara para gente barata.". Isso reflete como a baixa estima construída socialmente leva os sujeitos a não se sentirem pertencentes, ou melhor, merecedores do acesso a uma bela vista, sendo isso privilegio para aqueles que detém o dinheiro, "os brancos".

Num esforço de compreender o que significa a imagem, a sua construção e sua representação em nossas vidas vamos caminhar, conhecer, significar Novos Alagados. De precária infra-estrutura, desprovido de saneamento básico e de serviços de utilidade pública para a maioria da população, ela, revela-se como um espaço onde a maioria dos corpos dividem os poucos metros quadrados dos "casebres"- daquilo que lhes cabe na terra. Com o mal cheiro do esgoto a céu aberto que se mistura com o mar e os peixes que ainda resistem, os fios elétricos que cortam toda a parte por baixo das passarelas de taipa onde os pedestres circulam e submergem, nas águas lameadas daqueles (passados/presentes) mangues da Baía de Todos os Santos. Com portas enfeitadas de plantas, de pequenas janelas nas quais arranjos improvisados em lata de óleo, floridas, trepadeiras em frasco de desodorante e "quiboa"iii formando arranjos de flores artificiais, saco de lixo trabalhados em suas bordas em balões ou ondas. Tudo isso como enfeite, uma forma pobre e não tão peculiar de transcendência. Lugar que reserva o típico espaço do dia para as trocas de informações entre vizinhos (a fofoca) e, a ainda, mas quase escassa, solidariedade entre seus moradores.

A estética, além do significado do belo, é também a forma de olhar, a estética do olhar, e não apenas do aspecto contemplador. Nesse sentido, a estética é uma construção cultural do modo de ver as coisas e não as coisas em si mesmo (Maffesoli). Assim é pois a construção da identidade dos moradores de Novos Alagados, que como os de qualquer local da cidade não se relacionam apenas com as pessoas que vivem ali, a dividirem a mesma "realidade". Eles transitam, convivem em outros espaços e em meio a outras pessoas que se organizam a partir de outros referenciais de existência. É bem verdade que não podemos esquecer que usufruímos de um mesmo padrão estético de organização, ocidentalizado. Mas também não podemos esquecer que Salvador, assim como boa parte das capitais brasileiras, cresceu de forma "desordenada", configurando os traços de diferença e semelhanças na estrutura ocupacional e organizacional de bairros (bairros de classe média, alta e dos bairros de classe baixa), constituindo com isso todo um conjunto de hábitos, costumes e padrões.

A construção urbana da pobreza dentro da cidade do Salvador, onde a busca do espaço se dá em todas as direções, num movimento cada vez mais veloz e intenso, nos revela uma diversidade arquitetônica marcada pela própria pobreza, demonstrando, em seus padrões de ocupação do solo uma otimização peculiar do espaço, na forma de uma racionalidade construtiva habitacional. Essa caracterização estética da pobreza configura-se como contraposição a uma pobreza estética (modelo) acabando por configurar um espetáculo visual.

Transitar em locais onde o estigma da moradia e da "pele" (não é ela, por acaso, uma morada?) lhe acompanham e lhe definem como sujeito, é por demais intrigante para o indivíduo em suas relações sociais na medida que se internaliza os valores e a idéia de cidadania e dignidade pessoal tornam-se fluidas. Com isso, não quero fazer uma apologia de favelas, da pobreza, mas quero mostrar que a beleza, como diz Manuel Bandeira em seu poema Madrigal Melancólica: " é apenas um conceito e é em nós que ela existe", ou ainda que a beleza como um ato de criatividade estaria em todas as partes. Daí, não seria legítima a associação entre pobreza, bom gosto, beleza, e muito menos entre marginalidade, discriminação e violência.

Urbanização e arquitetura, universo e forma, são significados que operam o espaço e o tempo e constróem os modos cotidianos de existência. A "diáspora negra" produziu uma ou muitas e diversas aglutinações negras, que entre nós se traduziram em pobreza social, em estética existencial, mas também em transcendência cultural. A substância do tempo e o tempo como substância da vida na constituição do universo (urbanização) e da forma (arquitetura), na configuração da Cidade e nas " determinações" da sociabilidade soteropolitana.

Pensemos que, "o mar da pobreza sempre foram as palafitas fétidas dos Alagados. Mas aquele mar já não era mais disputado, e eles se tranqüilizavam um pouco, apenas um pouco, porque toda a existência era uma incerteza."2 Diante da incerteza, da falta de perspectiva a conformação dos indivíduos, aflora-se na passividade diante a precária situação social vivida. O sentido aqui esta em trazer o respeito pelos indivíduos, lhes possibilitando bem estar e consciência do seu papel como ser criativo, participativo e transformador dentro dessa estrutura social tão complexa na qual sobrevivemos.

Hoje Novos Alagados, assim como vários bairros da cidade passam por um conjunto de intervenções na sua estrutura organizacional, são projetos que visam a "melhoria" dessas comunidades. Em Novos Alagados a meta é, segundo informações recolhidas em jornais: modificar sua paisagem, com obras de urbanização, aterramento, saneamento básico, energia, pavimentação. Isso mostra como a imagem que se tem dessas localidades, em momentos de intervenção não passa pela melhoria das condições de vida, mas sim como erradicação do feio, do sujo: "vamos erradicar um dos cenários mais desumanos de Salvador". Disse a diretoria da CONDER em entrevista ao jornal A Tarde.

É com essas reflexões que abro espaço para as discussões: como os indivíduos que vivem a urbanização e a arquitetura da pobreza em confronto permanente com a urbanização e a arquitetura da diversidade social hierarquizada nos limites superiores das classes de renda, interpretam as formas de sociabilidade a partir das representações estéticas e dos discursos estabelecidos por um modelo dominante e absolutizante estético organizacional. E, portanto, levanto como questões preliminares (1) demonstrar como a visão que os indivíduos têm do seu espaço os influenciam em suas relações e em seus comportamentos fora do local de moradia, como: trabalho, escola, locais de lazer, repartições publicas e a cidade em todas as suas dimensões. Influenciando, enfim para a perspectiva crítica de sua cidadania; (2) identificar como, a partir da visão institucional, reflete e significa o local em que vivem, influenciando na posição e ação política desses indivíduos na vida social, em seu ethos.

 

NOTAS

1 - Em A Invenção do Cotidiano. 2ª Edição; Rio de Janeiro - Vozes, 1996.

2 - Gey Espinheira em seu trabalho sobre Bate Coração.

i - Este trabalho faz parte da pesquisa A Representação Estético Espacial na Sociabilidade dos Indivíduos em Novos Alagados, como requisito básico de conclusão de curso em Bacharelado em Ciências Sociais, em desenvolvimento no Centro de Recursos Humanos ( CRH/FFCH/UFBa), sob a orientação do Prof. Dr. Carlos Geraldo D'Andrea Espinheira

ii - Música: ILÊ de Luz do disco Canto Negro do ILÊ Ai YÊ, autoria Carlos Lima (SuKa).

iii - Marca de água sanitária utilizada pela maioria das pessoas.

BIBLIOGRAFIA

AVSI/CONDER, 1993 Novos Alagados: Recuperação Ambiental e Promoção Social. Salvador. mimeo.

CARVALHO, Maria Rosário G. de, et all. Identidade Étnica, Mobilização Política e Cidadania. Salvador - UFBa. Empresa Gráfica da Bahia, 1989.

CASTELLS, Manuel. Problemas de Investigação em Sociologia Urbana. Portugal, Presença.

Centro de Estudos Rurais e Urbanos. São Paulo, 1996

____________________________, Reflexos Sobre a Pesquisa Sociológica. São Paulo, 1996.

CERTEAU, M. A Invenção do Cotidiano. 2ª Edição; Rio de Janeiro - Vozes, 1996.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio A. Cor, Classes e Status nos Estudos de Pierson, Azevedo e Harris na Bahia: 1940 - 60. Comunicação apresentada no seminário: "Raça, Ciência e Sociedade no Brasil". Rio de Janeiro, 1995

OLIVEIRA, Márcio de, Raízes Epistemológicas da Noção de Imaginário em Gilbert Durand, In: Revista de Ciências Humanas. UFPr, Curitiba, 1996

HAUSER, P. M.; SCHONORE, L. F. Estudos de Urbanização. São Paulo, Pioneira, 1975

LYOTARD, Jean François. Lições Analíticas do Sublime. São Paulo; Papirus 1993

SECRETARIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO. Prefeitura Municipal de Salvador. Bahia, 1996.

SOUZA, Angela Gordilho, e outros. Habitar Contemporâneo, Novas Questões no Brasil dos Anos 90. FAUFBA, 1997.