inquice@ufba.br Livro de Visitas

As nações: ganhos e as motivações para escravos e libertos

Flávio Gonçalves dos Santos

(Mestrando em História pela Universidade Federal da Bahia)

 

Iya mi axexê
Baba mi axexê
Olorummi axexê ô
Ki nto o ba orixá e 1

É consenso dizer que os grupos humanos - sejam eles sociedades, comunidades ou grupos sociais - que perdem o contato com sua história, com o seu passado estão mais susceptíveis a uma dominação cultural. Assim, em uma situação de contato ou disputa cultural, torna-se mais vulnerável aquele grupo humano que possuir um repertório mais frágil. Esse repertório por sua vez é ordenado historicamente toda vez que é reavaliado em seus significados e cada vez que é colocado em prática. Daí a importância de se preservar o contato com a história, pois é ela que ordena e é ordenada - de diferentes formas em diferentes sociedades - pelo repertório cultural. Desta forma, mesmo quando um grupo humano é dominado por outro pelo uso da força, a sua sobrevivência enquanto grupo distinto e com identidade própria depende do vigor de suas tradições.2

Esse é o caso dos escravos no Brasil. Ao saírem da África deixando para trás o ambiente onde sua cultura foi gestada, eles foram compelidos a se readaptarem às novas condições de vida e a uma nova relação com o meio. No seu ambiente de origem, os africanos faziam as suas oferendas e consultas aos oráculos com o objetivo de pedir ou agradecer a prosperidade, a saúde, os bons negócios e a fertilidade das mulheres e da terra, mas sempre em sintonia com os ritmos e ciclos da natureza. A força desse relacionamento com o meio ambiente é melhor percebida na intercalação que é feita entre ele e o mundo mágico- religioso.

Na tradição Banto, por exemplo, o foco central é a terra. A explicação da cosmogonia, ordenação das relações de parentesco, de ancestralidade e da própria religião passa sempre por um esquema que faz lembrar uma árvore. Assim, o Kinsa - princípio e força motriz de todas as coisas - está na base e é a partir dele que crescem as ramificações. O Kinsa seria a própria terra. Essa ligação é tão forte que a palavra Kinsa é a "raiz" de onde se deriva a palavra Inquice, nome atribuído às divindades que compõem o panteão dos candomblés da nação Angola.

Menor não era a influência da natureza para os iorubás. Na lenda que conta como as folhas foram apropriadas por cada Orixá, a frase "Kosi ewe, kosi orixá"* revela tanto a importância das folhas para as divindades como a importância da natureza para os iorubás. Sem as folhas, sem a natureza, os princípios reguladores e ordenadores do universo não existiriam.

Na diáspora, rompe-se essa relação com o meio ambiente onde as tradições dos povos africanos encontravam o sentido de sua existência. Colocados em outra realidade e em outro meio geográfico do qual não possuíam qualquer referência ou ligação, provocou-se um choque. Várias tradições se encontraram em um novo ambiente que lhes era igualmente estranho e a partir do qual tiveram que se reelaborar para assegurar a sua sobrevivência.

Reelaboração cultural, reinvenção de tradições, qualquer que seja o nome que se dê a essas adaptações feitas pelos africanos no Brasil, não se pode perder de vista que esses fenômenos não extinguiram as diferenças, afinidades e conflitos existentes entre eles. Ao contrário, na busca pela reconstrução da identidade, aquilo que fosse um sinal de distinção seria valorizado e (re)significado. Esses sinais de distinção permitiam a rápida identificação dos indivíduos fazendo-se a relação dos sinais que usavam com o grupo ao qual pertenciam. De acordo com Manuela C. da Cunha, esses sinais podem ser a religião ou um modo de vestir. Para essa autora, os grupos étnicos são "(...) formas de organização novas e adaptativas ao agora e aqui e compartilham uma identidade porque compartilham interesses políticos e econômicos (...)", ligados a alguma vantagem "(...) na disputa com grupos rivais pelo acesso aos recursos (...)"3.

No caso específico dos escravos e libertos no Brasil - já que M.C. da Cunha ao fazer esta reflexão trata dos libertos retornando a Lagos no século XIX - qual seria esta vantagem buscada pelas pessoas que se organizaram em torno das nações? Quais seriam as suas motivações?

Se não se pode falar em homogeneidade cultural de escravos e libertos no Brasil pelas disparidades de referenciais por eles trazidos da África, é certo que haviam pontos de intercessão que permitiam uma maior flexibilidade na construção de suas novas identidades. A própria condição de escravo era o bastante - em alguns casos - para criar solidariedades, mesmo quando os traços culturais comuns fossem mínimos. Entretanto, quando estes traços existiam, os vínculos de solidariedade se estreitavam e atingiam um grau de parentesco simbólico mais próximo, o "parentesco de nação". Foi esta noção que viabilizou o contato e a relação entre as diferentes culturas africanas que aportaram no Brasil, seguramente, nem sempre de maneira amistosa. Levantes de escravos e revoltas - momentos cruciais, quando a cumplicidade era indispensável - tiveram por característica o não envolvimento desse ou daquele grupo por conta das alianças e desconfianças estabelecidas.

As nações que se constituíram no Brasil eram bem definidas em seus limites, no entanto nunca foram estáticas ou impermeáveis. A sua própria existência foi produto dos constantes esforços em fundir as referências vindas da África com as experiências e os contatos ocorridos com a escravidão no Brasil.

Entretanto, de acordo com Maria Inês C. Oliveira, o agrupamento de escravos e libertos em nações foi uma imposição exterior aos grupos. Em suas palavras: - é "(...) possível que originalmente a separação dos africanos por nações tivesse obedecido a interesses segregacionistas do poder civil e/ou da igreja com o objetivo de manter vivas as divisões entre a população escrava (...)"4. Assim, ao se incentivar as divisões, obstavam-se as alianças e o estabelecimento de uma polarização entre negros e brancos ou de escravos e libertos versus proprietários de escravos. Por outro lado, J.J. Reis atribui a invenção do "conceito de parente de nação" ao africano movido pelo impacto causado pela escravidão sobre suas estruturas de parentesco. Desta forma, mesmo quando houve uma imposição exterior como no caso das irmandades religiosas, as diferenças "(...) impediam a uniformização da ideologia que poderia levar a um controle social mais rígido (...)"5.Se é que as nações foram realmente uma imposição exterior, ainda assim elas criaram novos espaços de convívio e solidariedade dentro da sociedade escravista. Se haviam dificuldades para a manutenção de uma família consangüínea, as nações cumpriram um papel similar, onde o indivíduo era valorizado.

Durante a escravidão, ainda que com estatutos sociais diferentes, de escravos ou libertos, os negros eram percebidos pela sociedade apenas coletivamente. Ela só os entendia como mão-de-obra ou como um perigo constante para a ordem social. Assim, nos espaços criados pelas nações eles compartilhavam suas experiências e saberes individuais reconstruindo suas identidades enquanto pessoas e enquanto grupo. Deste modo, ao se valerem de suas experiências pessoais, mesclaram a suas práticas culturais as indígenas e portuguesas, porém, ao fazê-lo, não se homogeneizaram, apenas selecionaram nas outras culturas os elementos que melhor se adequassem à perpetuação de seus próprio valores.

As escolhas eram feitas a partir de um repertório anterior e as diferenças se estabeleciam a partir da maneira como este traço cultural era manifestado. Em verdade, o elemento escolhido reforçava um outro que não poderia ou não convinha aparecer explicitamente. Como as tradições africanas que aqui aportavam não eram idênticas, os elementos escolhidos, traçados e mantidos não foram os mesmos, nem da mesma ordem de importância. Variaram com as épocas, isto é, com aquilo que importava manter ou abrir mão em determinado período. Entretanto, as escolhas e/ou renúncias não seguiam um programa racionalmente preparado, antes disso, flutuavam ao sabor das contingências do dia-a-dia. Assim, pouco importava se um traço cultural era imposto, importava sim, conviver com essa imposição sem perder de vista as próprias referências. Esse é, por exemplo, o caso das nações e de muitas outras imposições do sistema escravista. Talvez o mais vigoroso exemplo desta conduta seja encontrado nas Irmandades de Homens de Cor. Elas, que foram um importante centro de reelaboração e de resistência à escravidão, vieram como uma imposição da cultura cristã e portuguesa.

Se o cristianismo foi uma imposição da sociedade escravista, por outro lado, a forma como o cristianismo foi incorporado revela a insubmissão desse grupo de pessoas em abrir mão de seus valores e a sua capacidade de encontrar soluções intermediárias. Renato da Silveira sugere que:

"(...) o processo foi muito mais embaralhado, uma grande mistura de estratégias (...), decisões tomadas por lideranças locais, flexões, indecisões e mudanças momentâneas de orientação. Por outro lado, optar pela constituição de uma religião socialmente reconhecida não exclui totalmente que o conteúdo religioso que ela ritualiza seja revigorado pelo sentimento de revolta (...)"6

Pertencer a uma irmandade significava lastrear práticas corrosivas ao sistema escravista que visavam livrar, amparar os irmãos e garantir-lhes um sepultamento digno, que por sua vez assegurasse a integridade dos restos mortais, pré-requisito, em algumas tradições, para o retorno do espírito ao seu lugar de origem na África. Além do que, mais que apenas um ponto de convergência das redes de solidariedade, as irmandades exerciam o papel de representação social e política das nações.7

Assim, motivados pela possibilidade concreta de estabelecer relações sociais distintas e com hierarquias diferentes das ditadas pela sociedade escravista, escravos e libertos encontraram no seio das nações o espaço social onde a sua subjetividade, a sua condição de pessoa, pudesse aflorar. Reintegrados a um novo grupo, a partir do qual reconstruíram suas identidades e enfrentaram o dia-a-dia do cativeiro, não mais sozinhos, como peças, mas - parafraseando M.I. Côrtes de Oliveira - Vivendo e Morrendo no Meio dos Seus.8 Os ganhos desse reencontro com os seus, com as suas origens estavam assegurados nas redes de solidariedade que se estabeleciam e viabilizavam as caixas para compra de alforrias, nos cantos de trabalho, no amparo a velhos e doentes, enfim, nas práticas coletivas que tornavam o fardo da escravidão suportável.

NOTAS

1 - Minha mãe é minha origem/ Meu pai é minha origem/ Olorum é minha origem/Sendo assim, adorarei minhas origens antes a qualquer Orixá. Deoscóredes M. dos Santos, Qual é o terreiro exclusivo de Orixá., Siwaju, Salvador: Boletim do INTECAB - Instituto de Tradição e Cultura Afro-Brasileira, 1988 apud Marco Aurélio Luz, Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira, Salvador: Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil, 1995. p.502.

2 - Entende-se repertório cultural como uma noção próxima do que M. Sahlins chamou de esquema cultural. Marshall Sahlins, Ilhas de História, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. p.15. Tradição, por sua vez, é aqui entendida como técnicas, experiências sociais e sabedorias comuns, transmitidas de geração em geração. Ver diferenciação entre costume e tradição feita por Thompson. Eduard P. Thompson, Costumes em comum, São Paulo: Cia. das Letras, 1998. p.18.

* Sem folhas não há Orixá.

3 - Manuela Carneiro da Cunha, Antropologia do Brasil, São Paulo: Brasiliense,1987. p. 89.

4 - Maria Inês Côrtes de Oliveira, "'Viver e morrer no meio dos seus', Revista da USP" , 28 (Dez./ Fev./ 95/96).

5 - João José Reis, A morte é uma festa, São Paulo: Cia. das Letras, 1991. p.55

6 - Renato da Silveira, Pragmatismo e milagres da fé no Extremo Ocidente, in João J. Reis (org.), Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil, São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 178.

7 - Reis, A morte, p. 53

8 - Oliveira, "'Viver e morrer'"