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A VOZ DO MORRO (1)

Luiz Elias Sanches
Mestrando do CPDA/UFRRJ

No momento em que escrevo estas linhas Zé Keti encontra-se internado no CTI de um hospital, no Rio de Janeiro. O jornal publicou uma pequena nota, dando a informação de forma fria e sem maiores esclarecimentos. Para muitas pessoas, de diferentes gerações, é absolutamente desnecessário dizer quem é Zé Keti, mas creio que nesta ocasião é importante dar alguma informação para aqueles que ainda não ouviram falar dessa legendária figura de nosso samba.

A primeira coisa que vem à mente é que Zé Keti é a voz do morro, como proclamou em seu famoso samba:

"Eu sou o samba
A voz do morro sou eu mesmo, sim, senhor
Quero mostrar ao mundo que tenho valor..."

Esta música, foi composta em 1952. Na época já existia a intenção de praticar uma política de remoção de favelas, que servia ao mesmo tempo à especulação imobiliária e a um ideal de "embelezamento" e ordenação urbana que simbolizava o progresso capitalista, sob a égide da "ordem". Tentaram na favela do Jacarezinho, mas a resistência organizada dos moradores impediu. Este projeto só pôde ser plenamente implantado após o golpe de 1964, quando os militares golpistas e seus lacaios no governo do estado do Rio de Janeiro podiam fazer uso mais aberto da violência para massacrar a resistência das populações faveladas.

Os defensores da política de remoção de favelas utilizavam como arma ideológica o "argumento" de que a favela era um reduto de marginais e vagabundos, para justificar as políticas das classes dominantes. Os moradores dos morros e favelas eram, e ainda são, também excluídos do direito à expressão de suas idéias, anseios, manifestações artísticas e culturais. Em suma, do direito à voz. Zé Keti veio, em seu nome, "mostrar ao mundo que tenho valor" e assim, dar sua contribuição para desmontar o argumento ideológico da marginalidade do morador de favela.

Depois do golpe, com a repressão à imprensa, não se poderia divulgar as violências praticadas contra aqueles que resistissem à política oficial. Isso facilitou a implementação daquelas políticas. Mesmo assim, corajosamente, nosso herói desafiava:

"Podem me prender,
Podem me bater,
Podem até deixar-me sem comer
Que eu não mudo de opinião,
Daqui do morro, eu não saio não."

E, de fato, batiam, prendiam, deixavam sem comer e, mais do que isso, torturavam, matavam, faziam desaparecer... e queimavam os barracos dos que se recusavam a sair, como na favela da Praia do Pinto. Batiam como bateram ao invadir o espetáculo "Opinião", em São Paulo.

Seu samba nascia de sua própria experiência de vida. Aos três anos Perdeu o pai, um marinheiro que havia participado da Revolta da Chibata, e que era habitual participante de rodas de choro. A mãe, para ir trabalhar tinha que deixá-lo em casa de vizinhos. Preocupada com o comportamento do filho, perguntava sempre, se ele tinha ficado quieto. A molecada tratou de apelidá-lo de Zé quieto. Daí para Zé queti foi um pulo. Quando se viu diante da necessidade de escolher um nome artístico, José Flores de Jesus adotou o Keti, com "K", por que estava na moda, "tinha Kennedy, Kubitschek, Krushev. Estava dando sorte. Daí o Zé passou a escrever o dele com K também", segundo depoimento de dona Leonor, sua mãe.

Quando manifestava a intenção de tornar-se sambista o padrasto o repreendia, dizendo que samba era coisa para vagabundo. Queria que ele fosse dentista. Como mais tarde constataria o Paulo César, que Zé Keti descobriu e batizou de Paulinho da Viola, em homenagem a Mano Décio da Viola: "sambista não tem valor nessa terra de doutor". Zé Keti passou sua vida tentando transformar essa realidade, num verdadeiro combate cultural.

Mas o combate pela afirmação da cultura e da arte popular não se separava da luta por condições de vida dignas para as populações pobres dos morros e favelas. Seu samba era uma poderosa arma nessa luta, denunciando o abandono daqueles que não eram, como ainda não são, prioridade para os detentores do poder. Em "400 anos de favela", celebra o quarto centenário da favela carioca, "sem água, com mágoa." "Acender as velas" é outro exemplo:

"o doutor chegou tarde demais,
Por que no morro
Não tem automóvel prá subir,
Não tem telefone prá chamar
E não tem beleza prá se ver,
E a gente morre sem querer morrer".

Porém, como disse Mestre Candeia, outro bamba, "enquanto luta a gente samba", ou como diz o próprio Zé Keti, no samba "madrugada", "sou boêmio, tenho de beber". A luta e a denúncia não excluem a alegria do samba. A vida já é dura, por que a gente ainda vai renunciar à alegria e à boêmia? O pobre morre por que o médico chegou tarde demais, mas morre como o "Malvadeza Durão", personagem de um de seus sambas: com um sorriso nos lábios. Esta característica, de cantar a alegria e o sofrimento humanos é que dá a seus sambas a sua marca de universalidade. E este é um aspecto importante nestes tempos de culto à superficialidade, à banalidade e à mediocridade, também na música.

Qualquer nota sobre Zé Keti tem de tocar em sua eterna luta contra as entidades "distribuidoras" de direitos autorais. Um compositor de tantos sucessos ? como a marcha “Máscara Negra", obrigatória em todos os carnavais desde 1967 ? passou sua vida lutando pela justa remuneração de seu trabalho artístico. Para onde foi esse dinheiro?

Só nos resta esperar e torcer para que, para Zé Keti, o doutor não tenha chegado tarde demais. Quem sabe ele ainda não possa fazer mais alguns de seus sambas para adoçar um pouco a tão amarga vida de nosso povo, afinal "quando não tem samba, tem desilusão".

NOTA:

1 - É necessário dizer que a redação desta pequena nota não me exigiu grande esforço de investigação biográfica, mesmo por que seu objetivo era apenas o de tentar recordar o papel de Zé Keti para a nossa cultura, restabelecendo-o, mesmo que dentro de um estreito círculo, ao seu merecido lugar. Os dados biográficos devem ser creditados à Marcia Blasques, que escreveu o fascículo n.º 32 da coleção MPB: Compositores, editada pela Editora Globo, e ao Ruy Castro, em seu "Chega de Saudade".