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Entrevista com o Prof. Dr. Ubiratan Castro de Araújo
concedida à Revista Inquice em 08/04/99


Questão1: Intencionalidade e antecedência dos Portugueses em relação a chegada ao Brasil .

Bira: A historiografia do descobrimento do Brasil hoje já superou largamente aquela antiga dicotomia entre intencionalidade e casualidade, e a questão da antecedência portuguesa ou de outros descobridores. Na verdade, o que está em jogo é um processo de expansão européia, através das navegações, que teve Portugal como ponta de lança tecnológico e humano, e contou com todo o apoio financeiro europeu. Autores como Immanuel Wallerstein, já colocam que é um processo de expansão européia e de constituição de mercados capitalistas mundiais. Um processo de mundialização do Capitalismo, onde Portugal cumpriu função até o fim do século XVI, sendo substituído pela Holanda, que foi substituída pela Inglaterra, enfim um processo de expansão européia.

Dentro desse processo de expansão européia, Portugal, como a primeira Nação a se organizar enquanto Estado Nacional - uma monarquia centralizada, foi capaz de mobilizar recursos para empreender a abertura dos mercados mundiais ao capitalismo, e, do ponto de vista geográfico, empreender o achamento de novas rotas, ligando os velhos continentes e o encontro, achamento ou descobrimento – segundo alguns – do novo continente americano. Isso é um grande processo, e neste grande processo é evidente que os portugueses estavam na vanguarda, mas não foram os únicos .

Então, não é mais traumático se discutir se houve outros que antecederam os portugueses na chegada ao Brasil. Todo mundo sabe que houve as expedições de Alonso Hojeda, as expedições de Vicente Yañes Pizon, que chegaram, seguramente, ao litoral norte brasileiro - do Rio Grande do Norte até o Amapá -, como parte das viagens espanholas nesta área que Colombo descobriu, a área do Caribe. Eles estavam passando exatamente pelo sul do Caribe. Há documentação, e até gravuras, que representam essa passagem.

A grande questão é o nosso etnocentrismo hoje [tom irônico], porque hoje essas terras correspondem ao Estado Nacional Brasileiro, mas naquele tempo não, ali eram terras dos Caraíbas, terra dos Potiguares, de nações indígenas, não tinham a conformação de Brasil, e nem aqueles navegantes tinham clareza de que aquilo ali fazia parte de um grande continente que se estendia para o sul [América do Sul]. Era perfeitamente plausível – acreditavam eles – que fossem as ilhas do sul do Caribe, zona de expansão espanhola. Na verdade, eles não sabiam que estavam descobrindo o Brasil, nem estavam querendo descobri-lo. Eles estavam consolidando todo um reconhecimento do grande Caribe, porta de entrada espanhola.

Cabral não foi o único. Em Portugal, há notícias da viagem de Duarte Pacheco Pereira, também conhecida, que veio em (14)98 para testar o Tratado de Tordesilha, saber o que tinha ao sul. Veio e foi pela mesma rota que seguiram Yañes Pizon e Hojeda, na rota do hemisfério norte, descendo um pouquinho, pegando o Cabo de Santo Agostinho, Cabo de São Roque, voltando por cima... quer dizer, o que se sabia é que existia essa terra nesta latitude mais próxima do Equador, mas não se sabia se isso era um continente ou não, nem aquilo se chamava Brasil. Cabral é, digamos assim, um achamento institucional, porque ele encontra, indo para a Índia, uma terra, à qual ele chama de ilha porque pensa que é uma ilha, dentro da área de Tordesilhas, área definida como portuguesa, ou seja, consolidando essa área que ele acreditava servir como ponto de apoio à rota das Índias.

A verdadeira significação do descobrimento de Cabral – se é que a gente pode usar o termo descobrimento – foi ter encontrado uma terra, que ele considerava ilha, no caminho da Índia, a qual era imediatamente útil como ponto de apoio para rota indiana e que foi imediatamente festejado e proclamado pelo rei de Portugal, que tomou posse do que já era seu do ponto de vista da legislação internacional, legitimada pelo Papa, em detrimento, evidente, dos tupinambás, que não conheciam o Papa, nem tinham acesso ao Tribunal Internacional do Vaticano [tom de brincadeira].

Sobre intencionalidade, também não é mais uma alternativa entre intencionalidade e acaso, porque é, também, uma questão etnocêntrica brasileira saber se já existia o Brasil, se ele era suficientemente importante para já ter despertado interesse para uma descoberta e uma conquista, ou se não havia nenhum interesse e bateram aqui por acaso.

Evidente que nesse processo, voltando àquela idéia de processo de expansão, toda navegação portuguesa pelos mares do Atlânticos Sul tinha a intenção e contava com a possibilidade de encontrar novas terras. Era um dos objetivos dessa navegação encontrar, descobrir, desocultar novas terras onde houvesse a possibilidade de ganho, de exploração econômica. Há, hoje, uma nova historiografia, como a representada por Guilhermo de Guicci, autor do livro Sem Fé, Lei ou Rei: o Brasil de 1500 – 1562, que admite que a navegação, como era praticada no século XV/XI - uma navegação à vela, era povoada de incidentes, eventos e acasos. Dava uma tempestade, tirava da rota; quebrava um mastro, o cara ficava sem rumo, tudo acontecia. Há uma crônica dos grandes naufrágios portugueses. Então, fazia parte desse ciclo de navegação o acaso.

Os franceses, por exemplo, descobriram o Brasil por acaso. O Paulmier de Gonneville chega ao Brasil em 1503 inteiramente por acaso. Ele sai numa expedição armada para ir à Índia e no meio do oceano dá tudo errado, tem peste à bordo, tempestade, morre gente, diabo à quatro e o cara termina batendo território que corresponde à atual Santa Catarina, entre os índios carijós, e tem de levar lá alguns meses para reparar o navio e voltar a França. Leva Essomericq, que é um filho do chefe carijó, para França, adota esse menino como filho – que aliás tem descendência francesa até hoje e jamais pôde voltar ao Brasil -, mas Paulmier de Gonneville chegou a Santa Catarina por acaso, a tempestade, perdeu o rumo e foi grande o prejuízo, porque investiram tudo na expedição à Índia. "Compraram" dois navegadores portugueses que mudaram de lado, e os caras foram bater no Brasil, voltaram de mãos vazias e com um índio a bordo, nunca mais ele achou investimento para nada, o acaso também existe [ar de riso].

Eu acho que o importante não é isso. O importante é fixar que, na verdade, o que ocorreu foi a incorporação das áreas que hoje correspondem ao Brasil à rede de mercados capitalistas que vão se constituindo na expansão européia. O conceito de descobrimento é fraco, descobrimento do quê? Da terra? Descobrimento de riquezas exploráveis? É tudo muito lento, vamos entender isso como um processo de expansão européia, de incorporação e transformação das novas áreas no interesse desses mercados; que é o caso do Brasil, já que não tinha nada imediatamente possível de ser saqueado, não tinha ouro nem prata.

Américo Vespúcio se queixava. Na minha opinião quem descobriu o Brasil foi Américo Vespúcio, porque, se tinha um ponto ao norte, que parecia Caribe, pelo qual Duarte Pacheco Pereira e os espanhóis passaram, uma ilha ao sul, no meio do oceano, pela qual Cabral passou, é ele [Vespúcio] que vem com a missão de saber se essa zorra formava um continente ou não. A missão de reconhecimento era explícita, ele foi escolhido por ter participado como piloto da expedição de Hojeda e já ter estado no norte. Ele foi pro norte e foi descendo, acompanhando a costa brasileira no sentido sul/sudeste, fezendo o reconhecimento da costa do Cabo de Santo Agostinho – onde Duarte Pacheco e Hojeda passaram – até a foz do Rio da Prata, botando nome em tudo. Nesse momento se caiu na real: tratava-se de um grande continente, que ia até o Polo Sul, e só Fernão de Magalhães vai achar a passagem para poder contornar esse grande continente, aí é que se diz: - "Pô! Não é só uma Ilha de Vera Cruz, nem uma ilha do Caribe, é uma zorra de um imenso continente." Quer dizer, o conhecimento europeu sobre o Brasil muda a partir de Américo Vespúcio.

 

Questão: Relação entre colonizador e colonizado

Bira: Bom! Sobre a relação entre o colonizador e o nativo, como vocês me perguntam, colonizado.

Primeiro, para entender uma relação, tem-se que entender os dois lados da relação, a menos que seja uma relação unívoca, e quem são as dois lados? Quem é esse português que vem pra cá? Esse é um tema clássico da historiografia brasileira, saber qual a formação cultural desse português que vem para o Brasil. É o interesse de Sérgio Buarque de Holanda com a História Cultural da Colônia.

É preciso ver que é uma formação diversificada. Uma coisa é o português nobre, que vem em missão de Estado, por sua própria condição de nobreza. Este vem em busca de terra, de poder, de nobilitação.

Outra coisa é o português comum, marinheiro, o homem pobre que está vivendo aquele clima de expansão e conquista, e essa História Cultural mostra como ele é mobilizado pelo espírito de aventura da época, há o medo do desconhecido, uma dose muito forte de cristianismo, o cristianismo cruzado de conquista e expansão, e muito pragmatismo de fazer o Brasil. Ou seja, chegar a um lugar onde pudesse buscar meios de se enriquecer e mudar de classe, enfim, chegar ao Brasil como uma forma de ascensão social.

Há também o português que vem para cá como castigo, a terra do degredo. O degredo é uma instituição portuguesa muito anterior ao descobrimento. Era comum em Portugal medieval, Portugal da reconquista, se degredar as pessoas, tipo ostracismo grego, e mesmo algumas cidades fronteiriças, algumas áreas mais perigosas eram decretadas como áreas de couto -de onde vem acoitar ou acoutar, coitero, o coitero de cangaceiro –, para onde onde ia o pessoal mal visto. O [réu] era condenado a ficar em determinada praça, determinado castelo ou determinada cidade, confinado como forma de castigo, de prisão a céu aberto. De repente, a colônia abriu espaço para uma prisão a céu aberto monumental, de milhares e milhares de quilometro [riso irônico]. Manda o cara pro Brasil porque ele cometeu qualquer coisa, e esse degredado vem para cá como uma forma de expiação de um crime, vem porque é melhor está aqui, na pirambeira, do que lá em Portugal na cadeia, na zona de couto. O fundamental é que se perceba que o degredo é uma tradição européia, mas muito mais portuguesa, porque Portugal era área de contato, área de fronteira da Europa, área de conflito com o mundo árabe, área de contato com o mundo africano, é área de contato com o Mediterrâneo – que é o meio de comunicação por excelência com o mundo grego, o árabe, enfim com o comércio do Oriente. Neste período, combinando a área de fronteira com o contato com uma fortíssima presença da Igreja e do catolicismo, desenvolve-se nestas áreas uma identidade de contraste com os outros. Portugal se define como o oposto dos mouros, os mouros são o inimigo, são outra civilização, eles tem outra cor, eles são maometanos, são de má fouma, de fé oposta. Essa coisa de você está todo o tempo se confrontando com os outros, mas outros do ponto de vista antropológico, cultural, não é só outro, é o inimigo político. Essa distância para o outro, entre cristão e gentil, civilizado e bárbaro, português e mouro, é que é o principal elemento da instituição que é colada em Portugal desde cedo, a escravidão. Você só escraviza o outro. Mesmo quando se tem que escravizar o seu próximo, isso é o que demonstra Claude Meliasseaux no seu livro Antropologia da Escravidão, tem que transformar o seu próximo em um outro, processo de estranhamento, como ele chama. É preciso empurrá-lo cada vez mais pra fora de sua cultura, tem que segregar o cara até ficar com raiva dele e depois escraviza-lo.

Voltando, então, ao processo de estranhamento, o português é aquele que mais tem contato com os outros, e é aquele que mais tem que defender a sua identidade de cristão. Os outros são inimigos e, portanto, devem ser tratados como inimigos e escravizados. A escravidão está muito ligada a essa forte identidade cultural e ao racismo, a essa coisa de você identificar o seu e depreciar absolutamente o outro. Esse conteúdo da escravidão vai marcar todo o contato português com os outros. Ele chega ao mundo árabe escravizando, desde 1443, com Antão Gonçalves, o sujeito que descobre as rotas, o primeiro traficante português nas zonas da Senegâmbia e Guiné (atual Senegal), que Portugal pratica a escravidão africana, escraviza africano pra vender. Chegando no Brasil o comportamento em relação aos índios é um comportamento de escravização, o gentil pra ele é bicho, um bicho é alguém que é o diferente dele, mas, ao mesmo tempo, a relação com as índias é diferente: primeiro a relação de encantamento com o modo de vida indígena, o mito do bom selvagem, que depois voltou da Europa como o país da felicidade, da sacanagem absolutamente liberada. Abaixo do Equador não tem pecado, chega-se e encontra-se tudo fácil na rua, no meio do nada, as índias nuas tomando banho e tal, enfim, aquilo é uma espécie de visão do paraíso... e no paraíso vale tudo, tem que mandar brasa. Esse é um dado que não deixou os índios contentes, aí você tem a guerra, e a resposta à insolência desses índios que querem priva-los [portugueses] desse prazer, é a escravidão: tome-lhe bala, tome-lhe escravidão. Esse é um tipo de reação, um cotato que, mesmo quando "movido por uma católica e boa intenção," como diz Thales de Azevedo, se desdobra na escravidão, porque a própria curiosidade sexual das índias em relação aos portugueses que chegam – "Que bicho é esse?" - foi utilizada pelos portugueses, segundo o próprio Thales e segundo Edison Carneiro no livro dele sobre a fundação da Cidade, como um potente instrumento de escravização no começo da Colônia.

Veja o caso da curiosidade feminina em relação ao turista, os estrangeiros. O Brasil é o único país do mundo onde se dá colher para turista estrangeiro. A gente viaja para o resto do mundo, nego olha para a gente como inimigo distante, mas aqui não, bastou o cara chegar, trocar língua, mesmo que seja um simples argentino, tá todo mundo aí de perna aberta – "Venha cá... porque blá, blá, blá ..., meu gringo e tal." O gringo é uma coisa... é essa a mesma curiosidade indígena de provar como é que é, saber se é bom e tal.

De 1549 em diante, em Salvador, era comum o português ter quatro, cinco, concubinas índias. Para além dele ter um boa vida de gozar bastante, ele também utilizava dessas índias como trabalhadoras, palnatando as roças, produzindo os meios para sua sobrevivência, e ele ficava na rede, numa boa, só pensando na política, em puxar o saco do comandante de armas, do capitão geral, enquanto as índias faziam o fundamental, proviam a subsistência. Era uma escravidão sexual, a questão da mulher, esse é um tipo de relação que mistura a admiração e a cobiça, o prazer e o fundamental, a relação de escravidão, de usar o outro como meio de vida, seja no comércio, vendendo pra tirar lucro; seja na produção, botando pra trabalhar, é a mesma atitude, bota-se o outro para trabalhar, o que termina sendo, para mim, a grande marca da civilização portuguesa. Não se pode dissociar Portugal, o Brasil e o Mundo Atlântico, de 1443, do Antão Gonçalves, até o século XIX, até o depois da abolição do tráfico, 1860 em diante, Portugal, para o mundo europeu, era visto como o grande país da escravidão, a grande marca cultural de Portugal é a escravidão, não é a saudade, não é a aventura, não é essa coisa que a História Cultural hoje tá buscando, não é a religiosidade, é a escravidão pragmática, se desse duas oportunidades, já estava ali escravizando. Não é à toa, deixe fazer uma brincadeira lingüística ou semântica, sei lá... Em todas as línguas quando você agradece a alguém se diz muito agradecido, ou seja, eu estou muito agradecido pelo favor que você me fez: merci; thank you e por aí vai, na língua portuguesa se diz muito obrigado, ou seja, você me fez um favor e eu estou obrigado a retribuir. Eu já lhe digo que estou obrigado a lhe dar alguma coisa em troca, é toda uma lógica da obrigação, da relação de dependência das pessoas, desse controle pessoal sobre os outros. Eu acho que essa é uma característica geral que vai ser fundadora de uma cultura brasileira, a cultura da obrigação, a cultura de botar o outro pra trabalhar; a cultura que, mesmo tratando de prazer, tira vantagem por conta da intimidade. Na Bahia é típico, você começa a tomar intimidade com alguém e logo vai transferindo responsabilidade, cobrando coisa, pedindo coisa, enfim, tomar intimidade é um sinal de tirar alguma vantagem, é meu amigo, pode então usar o outro como seu seu preposto, como seu empregado. Por isso se diz: "Oh! Não quero intimidade comigo." A classe dominante brasileira como é sábia! Ela, que chegou a ser dominante porque tem alguma sabedoria, diz: "A pobre nem bom dia pra não dar ousadia", ou seja, nada de intimidade pra não vir pra cá me pedir coisa, criar obrigação.

 

Questão: Permanência do comportamento político das elite

Bira: Ainda nesta questão do português que chega, um dos tipos humanos que vem é o burocrata, é o fidalgo português. Na expansão portuguesa, uma das virtudes do rei de Portugal, da monarquia portuguesa, foi canalizar para o mesmo empreendimento, que eram as navegações e a conquista, tanto a nobreza de espada, a nobreza territorial, quanto a burguesia, os vilões, os comerciantes, classe social competidora, inimiga. O rei conseguiu incorporar os dois no mesmo projeto. As coisas ligadas ao governo, ligadas ao exercício do poder militar era exercício do nobre. Geralmente em todo navio, toda expedição, o comandante militar é o nobre, que não sabia nada de navegação, tipo Pedro Alvares Cabral, mas que ia com a missão de fazer a guerra, de impor a lei, cortar cabeça, e do lado ia sempre um feitor, que era um burguês, o negociante, para os assuntos econômicos. Esse nobre vinha pra quê? Vinha como funcionário de estado, e o melhor exemplo desse tipo de nobreza foi Tomé de Souza, o primeiro governador geral que coordenou o processo de construção da Cidade do Salvador. Ele é um nobre de carreira, um fidalgo, que tinha, como todos eles, passado pela Costa d’África, no Marrocos em Arzila, nas fortalezas da Costa do Marrocos, que tinha experiência das lutas na Índia como capitão, no comércio indiano, e que veio pra Bahia com a missão de fundar a cidade do governo geral, e cumpriu sua obrigação, construiu a cidade, montou o governo, matou índios, começou a conquista do Recôncavo. E, enquanto estava aqui, escrevia sempre para o rei: - "Olha! Eu prometi a vossa majestade que ficava aqui durante 3 anos, meu tempo está acabando, cadê meu substituto, eu quero voltar, acabou o meu tempo". Finalmente foi substituído por Duarte da Costa, saiu daqui, voltou para Lisboa e foi promovido, isto é, passou para outras missões mais importantes, mais rentáveis, morreu como alto funcionário do rei. Essa é a figura do fidalgo português que vem para o Brasil, da elite dominante política, o fidalgo de sangue no melhor padrão medieval. Este sempre passa um tempo no Brasil cumprindo uma missão depois volta para Portugal e segue sua carreira. Assim passaram os governadores, os vice-reis, os desembargadores, enfim, toda essa cúpula portuguesa que tem no Brasil uma etapa na sua carreira administrativa. Tomé de Souza é um exemplo disso, e isso marca uma tradição na burocracia brasileira, essa dependência do Estado, essa devoção ao rei, devoção ao serviço público, uma vida a serviço do Estado. Cria-se, inclusive, a reprodução de um estamento, como defende o Raimundo Faoro – o estamento burocrático. A gente vai ter alguns exemplo que retomam sempre essa tradição brasileira, por exemplo, o Pedro II, foi um monumental burocrata. Ele foi educado para ser burocrata, foi um grande funcionário público, viveu e morreu pelo seu emprego, na sua rotina, de remuneração, de ascensão. O Getúlio Vargas foi um grande burocrata. Atualmente, você tem na Bahia um Paulo Souto, um grande burocrata, quer dizer, essa coisa de fazer carreira no Estado de ter no Estado o seu horizonte de vida, no serviço público a sua razão de ser.

 

Questão: A data de 29 de março

Bira: Sobre a data 29 de março, a qual se convencionou comemorar a fundação da cidade, acho que há dois aspectos. O primeiro aspecto é que a palavra fundação não se aplica, porque se a gente pensa fundação como um dia em que se cortou uma fita, tirou uma placa, soltou foguete ou fez uma parada militar, isso nunca aconteceu, não há nenhuma notícia de uma cerimônia, nem de um ato administrativo de fundação da cidade. O que há é um começo de construção e funcionamento de uma polis, isto é, de uma cidade do ponto de vista político e administrativo com a função de ser capital da colônia portuguesa.

A segunda questão é que a própria data de 29 de março, ela surge num contexto político muito preciso. Durante os festejos dos 400 anos, promovidos pelo governador Mangabeira, autonomista eleito depois da queda da ditadura, oposicionista de Getúlio, e, como todos os autonomistas, fez questão de fazer uma festa dos 400 anos, uma grande cerimônia de refundação da Bahia, era a Bahia que se refundava depois da ditadura militar, e precisava de uma data pra comemorar. Passou uma berlinda tão grande que nomeou o Wanderlei Pinho como prefeito, um historiador que não sabia nada de cidade, mas com a missão específica de organizar a festa dos 400 anos da Cidade do Salvador e, portanto, ele precisava de uma data. Encomendou ao Instituto Gegráfico e Histórico da Bahia uma data. O Instituto organizou um primeiro Congresso de História da Bahia, com debates incríveis, e, segundo Cid Teixeira, muita confusão. Foi a maior briga, porque as datas são muitas, 29 de março, na verdade, é a data do dia em que a Armada do Brasil chegou à Baia de Todos os Santos, era a esquadra com Tomé de Souza e seus homens, não desembarcou, ele vai desembarcar no dia 1º de abril. Tem o dia 13 de junho, que foi a primeira procissão de Corpus Cristi, quando a vereança, quer dizer, a Câmara, o aparelho político da cidade, o primeiro ato da Câmara Municipal, o que se podia entender como o começo da Cidade do ponto de vista político. E, 1º de novembro, que coincide com o descobrimento por Vespúcio, data em que se assinalaram as folhas de pagamento das 420 pessoas que trabalharam na fundação da cidade. Veja bem, entre a chegada da esquadra na Bahia e o pagamento dos operários, foi uma longo período de construção e funcionamento, portanto, é inapropriado falar em fundação e a data de 29 é uma data apenas convencional. Foi o prefeito Agenor Godinho que, se louvando na discussão do Congresso de História, baixou uma portaria instituindo 29 de março com o dia de fundação da Cidade do Salvador. Aqui tem-se um problema, porque todos os meninos aos quais eu falei disso, no 2º grau, muito justamente ficavam pensando que foi um dia de festa no qual Tomé de Souza inaugurou [a cidade], hasteando a bandeira de Portugal, o que é absolutamente incorreto.

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