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A DISCUSSÃO RACIAL &
O CARNAVAL BAIANO

Flávio Santos


 

Em ocasião não muito distante, para ser franco no dia 13 de Maio de 1999, presenciei um fato curioso nesta cidade de muitas matrizes raciais. Na abertura do Seminário Carnaval e relações étnicas em Salvador, promovido pela Comissão Especial de Inquérito sobre o Racismo no Carnaval de Salvador, um vereador, que por decoro e ética prefiro não citar o nome, declarou lastimar o fato de existir no carnaval de Salvador um tipo de discriminação que todos conhecem de longo tempo. Tratava, o referido vereador, da discriminação praticada pelo chamados Blocos de trio contra os negros, mestiços e pobre que fôra denunciada por uma reportagem da Rede Globo de Televisão. E ele, juntos com seus nobres colegas, se propunham a apurar essa questão por meio de uma CPI.

Nesta terra do faz de conta, uma medida como esta poderia trazer alento e esperança à comunidade Afro-baiana, não fosse ela uma terra de faz de conta. Explico o meu raciocínio amargurado. As palavras do vereador bem intencionado – "... todos na Bahia sabem desse tipo de comportamento dos blocos de trio ..." - revelam ser necessário que, um fato como a discriminação racial, se torne manchete nas poderosas redes de televisão para merecerem apurações. Se realmente a preocupação dos vereadores é coibir práticas tão abominadas publicamente, mas tão praticadas diariamente em instâncias particulares, então porque se esperou que a celeuma fosse causada pela divulgação de uma reportagem onde um diretor de bloco admitiu publicamente o preconceito? Seguramente, outras pessoas já buscaram o amparo da lei contra esse tipo de abuso que atenta contra a cidadania das pessoas. Só para citar um caso já muito conhecido dos soteropolitanos, os fundadores do bloco Ilê Aiye se motivara a criar o referido bloco a partir de uma situação de discriminação idêntica à repudiada pelo nosso vereador. E, na época foram desamparados pela justiça. Mas, se argumentarem – "A época era outra, agora nós vivemos em uma democracia ..." – Eu, baseado no fato que gerou a CPI, repondo perguntando: Democracia para quem?

No Brasil não se pune por discriminação e preconceito, se pune por se dizer publicamente que discrimina

Talvez o cerne dos problemas raciais na Bahia, me arrisco a dizer no Brasil, não seja a prática da discriminação e do preconceito em si, mas a manifestação pública destas atitudes. A rigor, a disputa racial por espaço no carnaval é tão antiga quanto a sua existência enquanto manifestação que se dá em via pública 1. Mas desde que essa disputa não seja explicitada, não há incomodo nem o que se averiguar, todos sabem, todos convivem e todos sabem o seu lugar, o seu espaço preestabelecido . Portanto, não há o porque se comentar ou se explicitar esse tipo de norma consuetudinária. A punição, então recai sobre quem ousou manifestar publicamente a aplicação dessa norma.

Longe de querer justificar, desculpar ou investir de uma aura de vítima as pessoas que, raramente, são punidas pela prática da discriminação racial. No Brasil não se pune por discriminação e preconceito, se pune por se dizer publicamente que discrimina. Vejamos o caso que motivou a CPI municipal. Ao tornar público que só aceitava pessoas de um determinado tipo físico (que configura a chamada gente bonita), o bloco revela o que todos sabem, mas não revela só isso, revela também como a sociedade brasileira lida com as diferenças. Cada um deve saber e assumir o seu lugar e, desde que as manifestações contra e a favor de atitudes discriminatórias, não incomode os interesses econômicos e político de determinados grupos, elas não devem se levadas à sério.

Os grupos de interesses ligados ao turismo não devem ter gostado da imagem de intolerância que a reportagem revelou aos olhos de todo o país. Ela não ajuda a vender o seu produto: a Bahia paraíso, onde tudo é alegria e festa, um lugar onde os conflitos não podem aparecer. Quando eles aparecem, devem ser rapidamente conciliados ou minimizados. É essa capacidade de conciliar o inconciliável, que me parece ser uma das grandes marcas da cultura baiana, tanto daqueles que sofre as agressões quanto por parte de quem as praticam. Para explicar isso melhor, tomo por exemplo a CPI instaurada pela Câmara de vereadores de Salvador para investigar a prática de discriminação racial pelos grande blocos de trio. Ela foi criada não para responder uma demanda da população pobre e de descendência africana, mas para dar satisfação à opinião pública nacional a respeito de uma caso específico: a do carnaval. Mais uma vez todos sabem, inclusive os nossos nobres vereadores, que existem outras instâncias onde a prática das discriminações raciais se manifestam. No entanto não se vislumbra a hipótese de uma CPI para investigá-las. O que não faltam são situações que mereçam investigações e pessoas dispostas deporem sobre o caso. Se for por falta de sugestões eu faço as minhas, que tal a discriminação racial em supermercado, no Macro para ser mais exato, que possuía inclusive um processo no Ministério Público, quando este incendiou em Nazaré ? Ou a discriminação de um estudante de Direito da UFBa na portaria da Faculdade de Economia da UFBa, que também possui uma ocorrência registrada na 1ª Delegacia no Vale dos Barris?

A CPI instaurada pela Câmara de vereadores de Salvador para investigar a prática de discriminação racial pelos grande blocos de trio foi criada não para responder uma demanda da população pobre e de descendência africana, mas para dar satisfação à opinião pública nacional a respeito de uma caso específico: a do carnaval

Para essas situações não se criou CPIs, elas não foram alvo de interesse da grande mídia nacional, não causaram grandes constrangimentos aos grupos econômicos, portanto, não mereceram maiores atenções. O constrangimento que as pessoas que sofreram, a humilhação de serem tratadas como marginais, de serem atiradas para fora do estabelecimento onde estudam, não foi suficiente para sensibilizar a opinião pública e a Câmara de vereadores. O problema foi minimizado e a conciliação não foi necessária.

Já no caso da desastrada declaração veiculada em rede nacional, a conciliação é matéria de urgência urgentíssima. É necessário se criar uma CPI para conferir ao fato, se não um caráter isolado, pelo menos específico. Assim, na esfera nacional faz-se o ritual de mea culpa e na esfera local contém-se um arroubo mais aguerrido do movimento negro movido pela possibilidade de ver sua luta ganhar projeção nacional. É neste ponto, creio eu, que a habilidade de conciliação baiana se manifesta. Com a criação da CPI, os militantes do movimento negro se vêem chamados à responsabilidade de acompanhar e respaldar os trabalhos da Comissão, pois com todas as crítica e problemas esse é um espaço que deve ser aproveitado no máximo de suas possibilidades, afinal essa é uma oportunidade, até agora, única. Por outro lado, a população que sofre com a discriminação todos os dias, da hora que acorda à hora que vai dormir, vê na Comissão um sinal de que os poderes públicos estão assumindo um posicionamento contrário à discriminação racial. Os que em tese deverão ser punidos, têm a certeza de que um bom advogado e a morosidade da justiça farão o caso cair no esquecimento, na pior das hipóteses, pagarão uma multa com a arrecadação de apenas um show.

Todos cumprem o seu papel, ocupam os seus lugares e a CPI, por ser na Bahia, não acaba em pizza, acaba em caruru, com muito quiabo para escorregar com mais facilidade.

NOTA:

1 - Quem estiver interessado em maiores informações sobre esse aspecto do carnaval há na Biblioteca do Mestrado da FFCH/UFBa um trabalho de Raphael R. Vieira Filho chamado A Africanização do carnaval de Salvador: a re-criação do espaço carnavalesco (1876-1930), que discute essa questão da disputa de espaço no carnaval baiano.

Salvador, 21 de maio de 1999


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