SALVADOR, Dilton Oliveira de Araújo |
A construção de Salvador foi o elemento que forneceu materialidade à nova fase da política de colonização traçada pelo Estado português, a partir do ano de 1548. A cidade deveria, de acordo com as determinações do regimento dado pelo Rei D. João III a Tomé de Souza, constituir-se no espaço físico onde se instalaria a administração pública portuguesa na colônia, pois, até então, a condução geral do processo estivera essencialmente nas mãos de particulares, por concessão do próprio Estado, positivada nas cartas entregues aos donatários. Para além de uma mera obra arquitetônica, Salvador foi construída para ser o espaço primordial do exercício direto do poder político-administrativo português sobre todo o território, condição decisiva, naquela conjuntura, para o avanço da conquista e da colonização, não somente da capitania da Bahia, cujo capitão Coutinho não conseguira obter vitórias significativas sobre os índios, como de todas as terras descobertas pelos portugueses na América. A cidade, ou "fortaleza e povoação grande e forte" 1, deveria ser o braço do Estado nas terras a colonizar; o espaço físico onde se implantaria, de forma direta, a vigilância real sobre colonos, a repressão oficial sobre gentios, a força armada para evitar o avanço dos estrangeiros. A partir dela dever-se-ia dar o apoio necessário, procurando sempre o engajamento dos diversos capitães, a todas as áreas coloniais portuguesas neste lado do Atlântico, no sentido da superação do isolamento que marcava o sistema anterior. A construção dessa cidade portuguesa constituía-se em uma espécie de alavanca para que avançasse a colonização e a conquista do território. Funcionários reais de diversos escalões aportaram na Vila do Pereira no ano de 1549. Dentro desse quadro burocrático, uma espécie de ministério acompanhou o primeiro governador-geral, com competências sobre todo o território colonial, mesmo nas quase impenetráveis áreas das capitanias particulares: o provedor-mor da fazenda, com competência relacionada aos tributos e rendas em geral; o ouvidor-geral, funcionário real para os negócios da justiça; o guarda-mor da costa, para a defesa de todo o território da América portuguesa. Devido à debilidade portuguesa no início do século XVI 2, assim como à priorização dada ao comércio com o Oriente nas primeiras décadas desse século, o Estado metropolitano instituiu, pelo sistema de capitanias hereditárias, uma situação colonial na qual entregava a particulares, não somente as longas faixas de terras de 50 ou de 60 léguas, que eram dadas de forma gratuita e "para todo o sempre", mas também toda uma série de prerrogativas políticas, administrativas e judiciais, além do direito a rendas, com as quais os capitães passariam a gerir a ainda pequena produção colonial. O capitão deveria doar terras em sesmarias, além de ter em suas mãos a jurisdição sobre todo o território da capitania, o poder de nomear juízes e administrar a justiça. Portugal, ao descobrir as terras que viriam a tornar-se o futuro Brasil, não estabeleceu, de plano, uma política de exploração de longo prazo. Com o passar dos primeiros anos e décadas do século XVI, foi adotando políticas sucessivas para tirar um melhor proveito do seu achado. Assim foi que, na década de 1530, em decorrência dos seus relativamente parcos recursos, e da experiência com as capitanias hereditárias em Madeira, decidiu adotar o sistema no Brasil, como forma de promover a expansão da sua conquista, baseando-se, sobretudo, na experiência da utilização de recursos de natureza privada pelos próprios interessados. Vivia-se um processo de fortalecimento dos aparelhos estatais na Europa Ocidental, na medida em que os seus titulares (re) adquiriam prerrogativas políticas e administrativas, incluindo as militares, que estiveram por muitos séculos dispersas em mãos de potentados locais após a fragmentação do Império Romano e dos reinos germânicos que o sucederam. Era um momento de fortalecimento e consolidação desses Estados, entre os quais o Estado metropolitano português. Numa espécie de "contramão" do processo descrito acima, de centralização e nacionalização dos poderes, o Estado português, para viabilizar a colonização das terras descobertas, destinou prerrogativas próprias do Estado moderno aos capitães que receberam as doações das faixas de terra por nós já conhecidas. O Estado, numa espécie de concessão, "privatizou" a execução do processo de conquista e colonização, atribuindo aos capitães, a gestão do processo acima indicado, a partir da reunião de recursos em uma dimensão também privada 3. O item segundo da Carta de Doação da Capitania da Bahia a Francisco Pereira Coutinho, por exemplo, fazia doação e mercê, para sempre, para ele e seus sucessores, da competência jurisdicional cível e criminal. Ou seja, o donatário, indivíduo exterior ao aparelho burocrático, encarnaria a função de órgão máximo do poder judiciário. Teria a competência de escolher oficiais e juízes, que deveriam conhecer e julgar os processos de natureza cível e criminal. O Capitão também nomearia um ouvidor, que teria a função, entre outras, de conhecer e decidir a respeito dos recursos oriundos dos julgados de grau inferior. O Estado português entregava, com a Carta, a jurisdição e alçada ao Capitão e seu sistema judiciário para condenar à pena de morte certos acusados. Essa competência atingia os réus que, mesmo sendo cristãos e livres, não fossem "pessoas de mor qualidade" 4, os quais não teriam sequer direito a apelação ou agravo. Quando o fossem, poder-se-ia cominar até uma pena máxima de dez anos de degredo. Esses limites de alçada não deveriam ser considerados se os crimes praticados fossem os de heresia, traição, sodomia ou moeda falsa, casos em que a condenação à morte seria acompanhada da execução, sem direito, sequer, a recurso. Enquanto as leis e demais normas possuíam caráter público, a sua aplicação na colônia, devido às razões expostas, tinha essa feição privada. Essas normas eram implementadas por juízes leigos e politicamente dependentes de um donatário e cessionário de prerrogativas a ele atribuídas por aquele mesmo poder público. Nesse mesmo sentido, os forais das capitanias delegavam aos capitães a função de exatores das rendas e tributos coloniais. Aqui, o Estado português atribuía aos donatários a competência para a arrecadação de parte da tributação dos produtos coloniais. Ao estabelecer, por exemplo, que o quinto da produção de pérolas, aljofar, ouro, prata etc, iria para os cofres reais, dispôs complementarmente, que o capitão teria direito à décima parte desse tributo. O capitão cobraria o tributo e dele ficaria com uma certa fração, como delegado que era do poder público. Na trajetória da longa relação entre Portugal e seu território colonial, a partir das experiências vivenciadas e da sua avaliação, a metrópole foi alterando a natureza da sua política, procurando, assim, atribuir maior eficácia à sua intervenção. É o que se manifesta, no meu entender, quando da decisão de instalar, na colônia, o sistema de governo-geral, a partir do ano de 1549. Até ali, quase cinqüenta anos após o descobrimento das terras americanas, Portugal não havia avançado bastante. Devíamos espantar-nos com o fato de que algumas poucas capitanias tenham obtido um resultado positivo, implantando alguma atividade econômica e fazendo crescer a população de certos pontos litorâneos. O mais provável de ocorrer, em decorrência das políticas anteriores a 1550, era o fracasso e não o avanço colonial. Na Bahia, que foi a 2ª. capitania doada por D. João III 5, muito pouco havia sido realizado desde a doação, em 1534, até o ano de 1548 6. O Estado português compreendeu a situação. Identificou que, sem uma alteração substancial nos rumos da política de colonização, as terras descobertas, mas ainda não conquistadas, seriam perdidas para outras nações européias. Fazia-se necessário uma intervenção de natureza diferente de tudo aquilo que até então se fizera nas terras americanas. Fazia-se inadiável a instauração da "mão" do governo metropolitano, alterando-se, em favor de Portugal, a situação colonial, e impedindo, assim, o avanço de estrangeiros, sobretudo dos franceses, assim como realizando ações no sentido de impingir derrotas ou incorporar, de um modo ou de outro, os povos indígenas. Somente assim possibilitar-se-ia o crescimento da atividade econômica e da população, assim como a arrecadação das riquezas, tão desejada pelo Estado e pelos demais agentes da colonização. Dessa maneira, a construção de uma cidade fortalecida na colônia tornava-se elemento essencial para a implementação dessa nova fase da conquista. Era o que se pensava à época. Para garantir a expansão, o rei D. João determinava, no primeiro item do regimento dado a Tomé de Souza, o que vem demonstrar a importância da questão, que o primeiro governador fizesse "uma fortaleza e povoação grande e forte" em um lugar conveniente para dali "dar favor e ajuda às outras povoações". Este seria o primeiro espaço físico e urbano de total controle do Estado, chefiado por um funcionário e administrador do Estado português na colônia. Espaço metropolitano que deveria dar "favor e ajuda às outras povoações e se ministrar justiça e prover nas coisas que competirem a meu serviço e aos negócios de minha fazenda e a bem das partes" 7. Esse também seria o local do exercício das atividades burocráticas e administrativas centrais, relacionadas às tarefas da justiça e aos negócios da arrecadação tributária, que dali em diante seriam fiscalizadas e ou exercidas diretamente pelo Estado português representado oficialmente pelo governador geral na colônia. Assim, a idéia e decisão a respeito da construção dessa cidade colonial, insere-se no interior de uma nova política de colonização, política esta que foi adotada a partir das informações recebidas pelo rei português a respeito da situação da colônia, destacadamente aquelas relacionadas à presença de franceses e outros estrangeiros, entre os anos de 1547 e 1548. A nova política aqui referida, importou, sobretudo, numa intervenção direta do Estado nos rumos da vida colonial, instalando a administração pública portuguesa no espaço colonial, a partir de 1549. A cidade do Salvador foi, então, o instrumento criado no sentido de operacionalizar essa nova política; de facilitar a retomada relativa das prerrogativas administrativas, políticas e judiciais, antes entregues em mãos de donatários particulares. Esse foi, no meu entender, o sentido geral da decisão da criação dessa cidade portuguesa. NOTAS: 1 - Regimento dado a Tomé de Souza, 1º. Governador Geral do Brasil, por D. João III, em dezembro 1548. O Regimento pode ser encontrado nas anotações feitas por Braz do Amaral no trabalho do Coronel Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva, Memórias Históricas da Província da Bahia, editado pela Imprensa Oficial do Estado da Bahia em 1919. Vol. 1. 2 - Sobre as condições econômicas e demográficas de Portugal no século XVI, ver o capítulo "Portugal despovoado e pobre", do livro Povoamento da Cidade do Salvador, de Thales de Azevedo, pela Editora Itapuã, em 1969; 3 - Ver, por exemplo, o texto de Luis Henrique Dias Tavares tratando dos capitães donatários. Quando discorre sobre Pero de Campos Tourinho, informa: "vendeu o que possuía em Portugal, reuniu recursos, seiscentos colonos...". Luis Henrique Dias Tavares em trabalho recentemente publicado pela EDUFBA, cujo título é O Primeiro Século do Brasil Da expansão da Europa Ocidental aos governos gerais das terras do Brasil; 4 - Carta de Doação de cinquenta léguas de terra no Brasil a Francisco Pereira Coutinho, que pode ser encontrada no trabalho de Braz do Amaral, já indicado na nota 1; 5 - Tavares, Luis Henrique Dias. O Primeiro Século do Brasil Da expansão da Europa Ocidental aos governos gerais das terras do Brasil. Salvador-BA: EDUFBA, 1999; 6 - Há diversos trabalhos que trazem informações referentes à situação da Capitania da Bahia antes da chegada de Tomé de Souza. Entre estes pode-se destacar o de Edison Carneiro, A Cidade do Salvador 1549 (existe mais de uma edição) e o de Thales de Azevedo, intitulado Povoamento da Cidade do Salvador, editado pela Itapuã em 1969, na Bahia; 7 - Regimento de Tomé de Souza, já indicado na nota 1. Dilton Oliveira de Araújo é Professor de História do Brasil da UFBA |