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A VIOLÊNCIA DO MÉTODO
Violência Simbólica e Ação Pedagógica

Juliano Sousa Matos


 

"A diferença entre regra e exceção está no fato de que a exceção deve ser justificada."
Bobbio (Igualdade e Liberdade, 1995:10)

 

A educação é um agente de transformação psíquica. Todo processo pedagógico amplia o conjunto de representações do homem e sua realidade, com efeitos sobre sua disposição psicológica, político-social e existencial. As relações, os fenômenos e os objetos que não dispunham de um nome, referência discursiva ou designação simbólica, podem ser chamados a compor entendimentos e perspectivas, particulares ou coletivas, após um determinado aprendizado. As atitudes podem ser planejadas, pois revestem-se de uma causalidade discursiva prévia, onde os efeitos de uma prática futura são antecipados, esboçados e ponderados. Além de ganhos cognitivos, a educação promove uma revolução psicológica quando formaliza a distinção entre o contexto coletivo do significado e os limites singulares do sentido.

Para Vygotsky1, a produção de sentido é singular, e corresponde às construções simbólicas resultantes da prática individual do código linguístico. O significado, por oposição, é o sentido socializado, um consenso semântico praticado pela comunidade. Mais que verdades ou certezas, o sentido indica vitalidade subjetiva, considerando que é um investimento discursivo solitário do indivíduo sobre a realidade com a finalidade de compreendê-la. No entanto, os significados compartilhados (coletivos) não raro adquirem uma autonomia violenta e autocrática. Ocorre quando as sucessivas gerações que se utilizam de sua medição para compreender o mundo não questionam sua validade. As instituições de transmissão de saber e cultura tendem, por constituição, a legitimar significados e bens simbólicos dominantes2, resumindo-se a repetir regras e conteúdos. Passam a abrigam redes discursivas totais, saberes órfãos dos sujeitos que poderiam lhes atribuir causas e efeitos imediatos e contemporâneos.

A violência simbólica, como a indicamos aqui, consiste em manter e transmitir designações unívocas de expressões e signos - suprimindo expressões conotativas atuais – e inflacionar a educação com práticas massificadoras, privilegiando a indiferença das coletividades em detrimento da diversidade particular. Com efeito, Jurandir Freire Costa3 entende por violência simbólica: "... toda imposição de enunciados sobre o real que leva a criança a adotar como referencial exclusivo de sua orientação no mundo a interpretação fornecida pelo detentor do saber. O indivíduo cronifica a posição de dependência e perde ou amputa a capacidade de criar seu próprio elenco de significados". Os significados coletivos, já sem a coletividade que os provaram e estabeleceram, ocupam o lugar do sentido (particular), o que resulta na dependência radical do sujeito a circuitos intransigentes de entendimento da realidade. A escola deve ser libertadora. É função da educação libertar o homem de si mesmo quando este fala exclusivamente com a palavra que não lhe pertence.

A grave conseqüência pedagógica da violência simbólica, reside na imposição de redes discursivas de transmissão de saber com características totalitárias. Redes que tecem todo o contexto de referências para exegeses das relações e fenômenos da realidade. Assim, a violência simbólica4 "... impõe uma coerção que se institui por intermédio do reconhecimento extorquido que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante na medida em que não dispõe, para o pensar e para se pensar, senão instrumentos de conhecimento que tem em comum com ele e que não são senão a forma incorporada da relação da dominação". Privado da possibilidade de elaborar sentidos, pois há, desde sempre, o que perguntar e o que responder nos métodos totalitários, o estudante se cala com as palavras do outro que repete regras e ensino.

Enquanto as dimensões particulares são criativas e produtoras de sentidos originais, visões independentes do mundo, a dimensão coletiva é reprodutora de significados, preconceitos e signos dominantes que ditam um mundo irreparável e uma realidade inquestionável. Educar, hoje, em tempos de massificação corriqueira é, sobretudo, garantir o singular no coletivo, apostar na diferença que não se coletiviza. Sem o repertório simbólico desenvolvido no registro singular, as experiências de dominação e dor subjetiva são psiquicamente abolidas do universo da representação, tornam-se socialmente incomunicáveis e impossíveis de serem denunciadas. Ora, dizer o que sinto exclusivamente com as palavras do outro é permitir que apenas o outro diga o que sinto. O resultado é a exclusão do sujeito de sua fala e subjetividade, à semelhança da exclusão de seu gosto diante da música fetichizada5, pronta para ser consumida, que não requer um único movimento do sujeito no sentido de desvelá-la ou apreciá-la, que toma por pronto o movimento de mobilização subjetiva na direção da música e o resultado é a regressão da audição, que paralisada e inibida, completamente passiva na relação com a música, se atrofia e não adquire um tônus mínimo de vitalidade para uma autonomia do gosto particular.

A violência simbólica é um risco cotidiano a ser considerado na prática pedagógica. As metodologias de ensino são susceptíveis a acomodações e fetiches que tem por desfecho a dogmatização de regras e conteúdos. A ação pedagógica não pode ser violenta na insuficiência da transmissão ou na reprodução de preconceitos, demarcando o ato da descoberta e da aprendizagem. A ação pedagógica deve tomar por filosofia e função a desconstrução das redes discursivas totalitárias e relativizar a diferença apontada por Bobbio entre a regra e a exceção: a regra também deve se justificar, permanentemente. Se as palavras do homem o libertam da dor subjetiva, a educação deve libertar o homem das palavras que não lhes pertencem.

NOTAS:

1 - LA TAILLE, Y. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas do em discussão. São Paulo, Summus, 1992, pp. 80-82.

2 - BOURDIEU, P. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo, Editora Perspectiva, 1992, p. 121.

3 - COSTA, J. F. Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro, Graal, 1986, p. 75.

4 - BOURDIEU, P. A Dominação Masculina. In: Educação e Realidade, Rio Grande do Sul, UFRGS, 1979, p. 142.

5 - ADORNO, T. W. O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores/Adorno, São Paulo, Nova Cultural, 1996, pp. 80-81.

Juliano Matos é Bacharel em Psicologia com Formação em Psicologia Clínica e Mestrando em Educação pela UFBA, Professor da UCSal e autor do livro "Geometria de um Nó".


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